Em Paris com novo amor
 

Sempre avistava num apartamento no prédio do outro lado da rua um casal, um cachorrinho fox paulistinha e outro assim tipo cãozinho de madame, pelagem longa e clara, que eu não sabia o que era. Entre os caninos, fácil deduzir que o primeiro mandava no pedaço, andando para lá e para cá, acompanhando os donos, pedindo comida. O outro pouco era visto. De vez em quando, fazia uma incursão na sala e rapidamente desaparecia.
 
Evidentemente a mulher me chamava mais a atenção. Embora não pudesse distinguir claramente suas feições à distância, o corpo me dizia tudo. 
 
Já fazia uma semana que eu só via o homem e naquela tarde ele estava impossível. De bermuda, sem camisa, copo na mão, ele andava de um lado para o outro. Às vezes com o celular no ouvido. Sumia e voltava. Nada da mulher nem dos cachorros.
 
A ausência dela me incomodava. E o sujeito andando sem parar dava nos nervos.
 
Não aguentando a curiosidade, ao avistar o homem na sacada gritei: cadê a gostosa, vizinho? Notei que ele teve dificuldade para identificar de onde saía a pergunta. Então recolheu-se ao apartamento. Logo voltou.
 
Gritei mais alto, para me sobrepor aos lamentos ruidosos do mar arrebentando na praia: cadê a nossa gostosa, vizinho?
 
Desta vez ele me identificou pendurado no sexto andar. Primeiro, afastando ligeiramente para lados opostos os antebraços estendidos, abriu as mãos, certamente querendo dizer não sei. Depois deu de ombros, tentando me iludir que não se importava. Mentiroso, pensei.
 
Alguma coisa o fez retornar para o interior do apartamento. Sentei-me na poltrona da sacada e me entreguei à leitura do jornal, deixando de me preocupar com a vida alheia.
 
À noite saí para dar uma volta no calçadão. Ao passar na frente do primeiro bar na Avenida Atlântica, um garçom conhecido assim que me viu correu para fora.
 
- Tem um homem aí muito bêbado, acho que mora na sua rua. Pode ver se o conhece, para levá-lo ou chamar alguém da família?
 
Entrei e segui o garçom até o fundo do bar. Um homem sentado olhava fixamente um smartphone.
 
- Não o conheço - falei para o garçom. Não posso ajudar.
 
Ia dando meia-volta, quando ouvi o homem dizer com a voz denunciando embriaguez total:
 
- Como não conhece! Sou vizinho. O marido da gostosa. Ainda hoje gritou perguntando por ela.
 
Desisti de sair e me aproximei da mesa. Ele largou o aparelho e o apontou com o dedo.
 
- Está aí. Não queria saber? Fugiu com um francês da fábrica de automóveis. Veja.
 
Peguei o celular e vi a imagem da mulher sorridente na Torre Eiffel, tendo Paris a seus pés.
 
Devolvi o smartphone à mesa, ele voltou a pegá-lo, mexeu, largou e novamente o apontou.
 
- Olhe isso!
 
Era uma mensagem: Querido, estou com Pierre em Paris. Vamos ficar um par de anos ou um pouco mais. Não se preocupe, deixei de usar o cartão de crédito. Pierre é um amor, compra tudo para mim. Beijo nas crianças.
 
Entre surpreso e confuso, devolvi lentamente o aparelho.
 
- E agora, vizinho, o que é que eu faço?
 
- Cancele o cartão de crédito – respondi sem pensar.
 
Ouvi apenas um soluço e perguntei:
 
- Quantos filhos e onde estão?
 
- Nenhum. Só temos o Mike Tyson e o Lulu. Dois cachorrinhos. Ela os deixou com a irmã em Curitiba. As nossas crianças...
 
Não precisei perguntar qual dos cães era um e outro. Estava na cara.
 
- Quer que o ajude a ir para casa?
 
- Estou de fogo, não está vendo? Não consigo me levantar. Garçom, a conta!
 
- Estou vendo. Por isso ofereci ajuda. Vamos lá – respondi.
 
- O senhor já pagou, está tudo certo – disse o garçom.
 
Fiz sinal para o garçom se posicionar junto ao homem. Assumi o outro lado. Enquanto o auxiliávamos a se colocar em pé, com a perna afastei a cadeira da mesa. Fomos saindo devagar, os três abraçados sob os olhares curiosos dos fregueses. Ouvi risadas e vi o espanto na fisionomia de algumas mulheres.
 
Na calçada, percebi que o bêbado recitava uns versos. Apurei os ouvidos e reconheci um soneto do Vinicius. Na última estrofe, ele ergueu a voz como num discurso e tentou pronunciar as palavras com mais clareza, quem sabe pretendendo enfatizar o que sentia naquele momento. 

 

Essa mulher é um mundo! — uma cadela
Talvez... — mas na moldura de uma cama
Nunca mulher nenhuma foi tão bela!

 
Embora jamais a tivesse visto assim emoldurada, não era difícil concordar com o marido traído. Bastava um pouco de imaginação.
 
Levamos um bom tempo para vencer os cerca de trezentos metros entre o bar e o endereço do homem. Pouco menos da metade na Avenida Atlântica e o restante na rua que começa nela e segue para o interior do balneário, onde ficam os nossos prédios.  Quem passava por nós, imaginava três bêbados, embora só ouvisse a voz de um, ora cantando, ora dizendo versos. Alternando sussurros com altos brados. O garçom, apesar do esforço para suportar o peso do indivíduo, achava engraçado e ria.
 
Finalmente chegamos. Toquei a campainha da casa do zelador. Rapidamente ele apareceu.
 
- Encomenda para o senhor – falei brincando. Está entregue. Dê-lhe um café amargo.
 
O zelador tomou o meu lugar. Deixei os três e voltei a pegar o rumo da avenida. Nos primeiros metros ainda foi possível ouvir, mais uma vez, o homem declamando o soneto do Vinicius, quase aos berros nos três últimos versos, enquanto era carregado edifício adentro. 

 

Essa mulher é um mundo! — uma cadela
Talvez... — mas na moldura de uma cama
Nunca mulher nenhuma foi tão bela!
 


 

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N. do A. 1 - Na ilustração, Paris na Primavera de Caroline Burnett (EUA, 1877-1950).

N. do A. 2 - Nas intercalações, a última estrofe do Soneto de Devoção de Vinicius de Moraes.

N. do A. 3 - Este conto faz parte de antologia do III Concurso Literário de Paranaguá (2016).

João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 14/03/2016
Reeditado em 29/05/2023
Código do texto: T5573945
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