Vida em família: gula (janeiro de 2016)

A caminho de casa parou na padaria para comprar pães para levar para casa. Correu atentamente os olhos pela seção de doces e tirou também da gôndola um pacote de palhas italianas. Adorava os doces e de vez em quando comprava uma pequena bandeja do doce. Isso, a despeito de estar muito acima de seu peso: Érico era obeso.

Preocupava-se muito com a saúde, mas era apaixonado por um doce, e neste instante esquecia-se do combinado com a nutricionistas. Eram proibidos o açúcar, bolos e pães, mas frente a uma palha italiana não se permitia qualquer comedimento. Era este o instante de comer com alegria. Comeria sozinho pão francês e os doces.

Passando os pães e a palha italiana pelo caixa, aproveitou para comprar um maço de mentolados. Fumar era outro perigo para sua saúde, mas Érico não conseguia parar com o vício. Já tentara mais de uma vez parar com os cigarros, mas voltava ao vício em menos de uma semana de abstinência.

Todos os pedidos postos em uma sacola, sorriu simpaticamente para a operadora do caixa e pôs-se a caminhar pela calçada tranquilamente. A duas quadras da padaria lhe esperavam em casa a irmã Sofia seus dois garotos. Levava para eles os pães de sal e muito carinho. Sofia prepararia o café e serviria chocolate quente.

Já passavam das seis e meia quando Érico entrou na rua de casa. Aumentou o passo ao passar pelo movimentado posto de gasolina no começo da rua e pondo-se em disparada, ao atravessar a rua, chegou ao portão de ferro da casa onde morava. Ao bater com força (propositalmente) o portão, um dos meninos constatou sua chegada e gritou: “É ele!”

Sofia e as crianças o esperavam retornar do trabalho todos os dias e à mesma hora. Érico estimava os meninos mas escondia as palhas italianas dentro da bolsa de couro para não ter de dividir os docinhos com eles. Sofia também ignorava o apetite que o irmão sentia pelos doces.

Saboreavam todos juntos os pães franceses com queijo e puros, apenas com manteiga, – preparando-lhes o apetite para o jantar que viria logo depois, às nove horas da noite. A esta altura Érico já teria escondido o conteúdo de sua bolsa de couro dentro da gaveta da escrivaninha que ficava em seu quarto.

Sentaram todos ao redor da mesa de mogno da copa, onde faziam diariamente suas refeições. Puseram-se todos a partir os pães com as duas mãos, contados os quatro pães como um para cada um à mesa. As crianças sorviam cada um uma caneca do chocolate quente que lhes preparara a mãe.

As crianças terminaram o lanche antes dos adultos, e correram para a sala de estar para jogar videogame. Restaram na mesa Érico e Sofia. Aquele, lhe confidenciava ter tido um dia exaustivo de trabalho, enquanto Sofia lhe contava o quanto foi “especialmente cansativa hoje a espera pela chegada das crianças da escola.”.

Nesse instante lhe passou pela cabeça o horror que seria se Sofia descobrisse seu segredo: a palha italiana. Pensaria ela, “o quanto Érico é mesquinho ao não querer dividir comigo e com os dos meninos esses docinhos.”. Sentiu nesse instante, mais uma vez, que merecia a gordura como punição por sua gulodice.

Érico nutria este tipo de pensamento com frequência: Sofia abrindo sua bolsa de couro e encontrando lá os doces dele. Ela o criticaria e lhe diria que aí estava o motivo de sua obesidade. Sua obesidade era um castigo por sua gula. O castigo divino por não querer compartilhar com sua pequena família as palhas italianas.

Mas, na verdade, nada estaria mais distante da realidade que essa possibilidade de Sofia descobrir o seu segredo. Ela e as crianças o estimavam como o benfeitor que pagava a escola e todas as contas da casa. Não poderiam nunca conceber que escondesse comida para comer sozinho, à noite, dentro de seu quarto e antes de dormir.

Neste dia como nos outros, Sofia afundava em seu silêncio, e Érico compreendia como se isso fosse um reflexo de sua falta de assunto. Talvez não fosse carinhoso o suficiente com a irmã e esta se ressentisse como se isso fosse sua culpa. Da maneira como Érico via o silêncio de Sofia, era como se ela o repreendesse, secretamente.

Mas a verdade era que, secretamente, Sofia procurava polpar o irmão benfeitor de qualquer empecilho por parte dela. Escolhia as palavras exaustivamente para poupá-lo de qualquer sentimento de estranheza, do tipo que pudesse vê-la como um parente ruim. Na verdade, Sofia era profundamente agradecida a Érico por si e pelas crianças.

Emergindo do abismo de seu silêncio, Sofia anunciou para Érico que "hoje, para o jantar, ceariam sopa de legumes e torradinhas amanteigadas.". Este, de supetão também rompendo com o silêncio, soltou um suspiro profundo e esboçou um sorriso largo. Adorava as sopas que sua irmã fazia para a ceia. O jantar.

Jantaram os quatro às nove horas em ponto, de tal forma que às nove e meia cada um se retirava para seu quarto, com a exceção de Sofia que ia para a cozinha limpar a bagunça do jantar. Os dois meninos seguiram para o quarto que dividiam enquanto Érico ia para sua suite tomar uma boa ducha e vestir o pijama – o que fez sem nenhuma demora.

Teve tempo de ligar a televisão e encostar o corpo cansado na cabeceira da cama, com a bandejinha de palha italiana ao lado. Ainda antes de comer o primeiro docinho, que retirara do pacote, pôde degustar um pensamento, acerca de tudo e de todos: “Como as pessoas têm, cada uma, a noção exata de seu valor.”. Com isso, filosofou.

A irmã e seus filhos – toda sua família – reconheciam precisamente seu valor na relação familiar. Nem mais um, nem menos o outro, todos conheciam exatamente seu papel e pareciam felizes assim. Já quanto a si, julgou que não deveria sentir-se mal por causa da gula. Merecia desfrutar incógnito os doces como reconhecimento de seu papel familiar.