EM UMA NOITE QUALQUER DE OUTONO.

EM UMA NOITE QUALQUER DE OUTONO.

E eis que surge a lembrança em súbitos flashes através de um sonho, e acordo no meio da noite, e tento lembrar mais e mais, e não consigo, volto a dormir.

Dia seguinte, café da manhã, meia caneca de café com leite, ovo mexido, pão adocicado aonde passo uma não leve camada de manteiga/margarina, da marca Amélia e ainda brinco, pois diferente da Amélia imortalizada na música do grande Mario Lago, essa que acabei de passar no pão é uma verdadeira farsa, não sendo na verdade, nem manteiga nem margarina, gargalho com a ideia, então recordo dos flashes e com eles do sonho e também mais claramente da lembrança.

Ainda menino, 12 ou 13 anos talvez, fim de tarde, lusco fusco, papo alegre pós futebol da tarde toda entre 4 ou 5 amigos que ainda estavam por ali, no saudoso campinho em frente à casa que nasci, começa a anoitecer, fim de crepúsculo, hora que as mães mais zelosas começavam a chamar para casa os que como eu insistiam em esperar a noite cair, para só mais tarde se recolher à segurança do lar, mas justo no horário que as conversas ficavam melhores, mais fantasiosas, embalando a imaginação em histórias de fantasmas e assombrações, contos antigos que se revitalizavam ganhando roupagem nova a cada vez que eram contados, e assim estávamos, sentados no chão de terra batida, próximo ao barranco que margeava toda a extensão do nosso campinho de futebol e fazia arrimo para cerca de arame de um grande terreno que continha um vasto pomar diversificado, onde nos fartávamos com suas delícias, de forma escondida é claro, coisa de meninos que não tinham medo das eternas e nunca cumpridas ameaças do proprietário e sua espingarda de sal.

Mas estávamos ali, sentados e viajando nas histórias infantis, nesse momento já noite, céu aberto e lua surgindo uma leve brisa de outono, então somos arrancados dessa realidade fictória pela presença de um vulto que foi se aproximando, com seu corpo avantajado e vindo em nossa direção, de forma lenta se aproximou, resmungou algo, então o reconhecemos, era “Dinho”, um sujeito que todos conheciam, mas creio que poucos pelo verdadeiro nome, para nós era apenas “Dinho” louco, não sei se por derivação ou diminutivo, mas era isso, “Dinho” e louco e só.

O “Dinho” por assim dizer, não tinha uma boa reputação, carregava a fama de ser desequilibrado até mentalmente, envolvido com agressões e até acusações mais graves, nunca soube ao certo se isso condizia com a realidade ou se era apenas mais uma boataria, a verdade que tínhamos de fato um certo medo da figura que criaram em torno dele.

Então entre os resmungos ele disse se dirigindo a todos que estavam ali.

- Piazada, estão com fome?

Por certo estávamos todos era morrendo de medo, mas nunca confessaríamos naquele momento, iria contra a valentia infantil de ficarmos até tarde contando histórias de fantasmas.

- Não, seu “Dinho”! ... alguém respondeu.

- Vou fazer uma fogueira, então fiquem aí, disse ele.

Mesmo relutantes, ali ficamos, como contraria-lo sem ofende-lo, qual seria a reação dele, um mundo de pensamentos devem ter serpenteado pela cabeça de todos.

Então ele chegou onde estávamos, ele se movia meio lentamente, talvez tivesse bebido, seu corpo grande, de idade incerta, assustava, tinha faces judiadas pelo tempo, não tanto pela idade, talvez uns 30 anos, mas pelo sofrimento mesmo, carregava uma expressão rude normalmente, mas naquele momento estava mais sereno, diria até feliz.

Pediu então que recolhêssemos uns gravetos para a fogueira, o que prontamente todos obedeceram, logo estava lá uma pilha para ser acessa, ele separou dois maiores que continham uma forquilha em suas pontas, os enterrou e com mais um formou uma espécie de trave, cavou entre eles um buraco e ajeitou folhas secas e mais gravetos sobre elas, circundou o buraco com pedras e então com fósforos que carregava consigo ateou fogo nas folhas, e assim começou uma fogueira.

E nós ali, apenas observando atentamente o que ele fazia, seguiu então abrindo uma sacola surrada que carregava, de dentro retirou uma peça de salame cru, daqueles que foram embutidos a pouco tempo, uma volta inteira, e junto ainda retirou um pacote de mercado com alguns pães.

E disse, - Senta aí piazada que “seis” vão comer comigo.

Então partiu o salame pelo meio, espetou as duas partes na vara reta que formava o travessão e o apoiou nas forquilhas das traves que havia enterrando, e assim ficou o salame sendo assado sobre a pequena fogueira.

Enquanto ia assando lentamente, nos contou que havia ganho o salame e os pães no mercado que ficava em rua que fazia esquina com nosso campinho, uma jovem que lá trabalhava, lembro dela, de fato muito simpática, o havia presenteado com o jantar para aquele dia.

E assim ficamos na companhia daquela figura quimérica que se mesclava entre realidade e ficção na nossa imaginação infantil, ouvindo algumas histórias, falando de coisas que não lembro, escondendo um medo mas também atiçando a curiosidade.

Por fim o salame estava assado, um delicioso cheiro nos preenchia as narinas, “Dinho” dividiu os pães entre todos, retirou com uma pequena faca a carne de dentro da pele do salame e foi distribuindo entre os pães, e dessa forma comemos todos em volta da fogueira um sanduiche que ainda carrego na lembrança como um dos melhores que já comi, ao lado de um sujeito do qual pouco sabia, e muito temia, mas que se mostrou naquele momento uma excelente companhia, e tudo isso, em uma distante mas não esquecida noite qualquer de outono.