Sobre aquela noite (dezembro de 2015)

O galpão da escola de samba era grande e estava repleto de gente. Mesas decoradas com flores de plástico haviam sido espalhadas por toda a área. Pessoas de sandálias de dedo aglomeravam-se diante da fila para ganhar um prato de salgadinhos. A toda corda, os músicos reunidos no palanque cantavam um samba do ano que se passou.

Por pura coincidência, era natal. Sim, pura coincidência a comemoração de aniversário do vereador ter coincidido com o dia natalino. Havia alguns panos decorativos em vermelho e verde e até uma pequena árvore no palanque para assegurar de que estavam reunidos em uma data solene – a parte o aniversário do vereador.

A festa começara às sete horas da noite, sem o vereador. Este, chegara atrasado às oito horas, acompanhado do fotógrafo. A cada mão que apertava (e ele apertava todas as mãos) via-se o flash da máquina fotográfica. Conhecidos por ele ou não, fazia questão de saudar a todos. Vestia-se de forma simples, com um tênis surrado e rasgado.

Mônica fora convidada para a festa por uma tia que fazia política para o vereador. Chegou de chinelos de dedo, como lhe instruíra a tia, “é uma festa para o povo.” Mas chegando lá apaixonou-se de chofre com um homem de terno e gravata, ficando encabulada pela discrepância entre as vestimentas dos dois.

Lino também havia gostado da pessoa em sua frente, uma morena alta de cabelos ondulados caídos casualmente pelos ombros, e se apercebera também da discrepância entre seu traje e o traje de todos os outros que estavam lá. Mesmo o vereador estava vestido de maneira diga-se “casual”.

Mônica teve a impressão de que alguém que passava havia dado um encontrão proposital em Lino, como se para expressar que todo seu prumo era inadequado para a ocasião. O rapaz era idiota, sem tino para compreender onde estava e quais as exigências. O terno e a gravata destoavam de tudo no vinte e cinco de dezembro.

No palanque os músicos passaram do samba para a música de orquestra, pegando pesado no trompete. Alguns casais levantaram-se e puseram-se a dançar. Lino aproximou-se de Mônica e a retirou para dançar. Foi então que, ao pé de ouvido, se apresentaram os dois.

Da pista de dança do galpão encontraram uma mesa vazia para sentar, no caminho que fazia a volta para os toaletes. Tomaram cerveja e riram muito. Ele confessou para a mulher que vestia um terno emprestado para a ocasião, emprestado de um tio velho. Havia sido convidado para substituir este tio, que adoentado não pôde comparecer.

Beijaram-se quando a música mudara para um jazz romântico, tocado docemente para os apaixonados, ou talvez a cerveja proporcionasse esta impressão. Ao final da noite, antes de cortarem o bolo do vereador, trocaram telefone e despediram-se na esquina, de onde cada um tomou o seu rumo. Moravam em direções opostas.

Lino aludiu para a possibilidade de acompanhá-la até sua casa, mas Mônica o repreendeu, “não precisa.” “Já está tarde.” E seguiram cada um para o seu canto, ele assobiando de felicidade rua afora, ela cogitando se ele não era demasiado burro para namorarem. Para engatar com um namoro, tinham que ser idiotas da mesma maneira.

Veio o dia ensolarado, quente e abafado, e Mônica acordou bem cedo. Na cozinha encontrou pai e mãe, irmão e irmã, que perguntaram logo sobre a noite anterior. Ela não quis adiantar nada de Lino e calou de repente. Alguém percebeu seu desconforto e foi logo afirmando que Mônica conhecera alguém – o que Mônica não negou.

Sua mãe interpelou-a sobre a festa, sobre o natal e sobre o aniversário do vereador. Alguma coisa de interessante deveria ter acontecido em uma data tão singular. Mônica argumentou que, de fato, não permitiram passar em branco o vinte e cinco de dezembro. Houve música agradável, pessoas felizes, muita dança e uma cervejinha por conta.

Levantou-se depois do café para telefonar para a tia. Encontraram-se na festa de aniversário do vereador como combinado, mas depois desaparecera. Precisou pedir-lhe desculpas. Sua tia não pareceu ressentida, e de fato não lhe havia reparado a ausência, tão encantada com a figura do político a quem saudara por toda a noite.

Depois disso, era esperar pelo telefonema do “tonto” do Lino. Muito formal, não telefonou para ela antes do meio-dia. Assim que soou a campainha do telefone, atirou-se sobre o aparelho. Era ele: mansamente, convidava Mônica para passearem pela orla, pelo calçadão da praia, e tomar um refrigerante. Ela concordou sem muitos floreios.

Lino compareceu ao encontro com um chapéu australiano que usava para protegê-lo do sol. O chapéu destoava um pouquinho da moda. De fato, em outra ocasião e trinta anos de diferença, ele estaria vestido perfeitamente para um passeio à beira-mar. Mônica constatou isso, mas sentia que já gostava o bastante do malandro para o censurar.

Caminharam de sorrisinhos um para o outro durante uma caminhada de um quilômetro. Depois sentaram-se e pediram duas coca-colas. De fato, foi Lino que se adiantou e pediu o refrigerante. Na verdade, lhe apeteceria mais a Mônica tomar uma água de coco. Para não causar um constrangimento em Lino, calou-se e tomou de canudinho a coca.

“Vamos tomar um banho neste mar lindo?” Mônica vestia uma canga sobre um biquíni colorido, já intencionando cair no mar. Lino envergonhou-se, porque não havia cogitado o fato de meterem-se na praia e ficar grudento com a areia. Estava impossibilitado de aproveitar o mar. Disse, “neném, estou sem sunga de praia embaixo.”

Mônica disse, espontaneamente sem pensar, “neném?” Ao que Lino desculpou-se. Não queria ofendê-la, explicou, apenas expressar seu interesse. Pôs os olhos no chão, como se a procurar por alguma coisa, mas sem graça pelo corte de Mônica. Ela percebeu o impacto de sua indagação e tentou desfazer o mal-estar tocando-lhe com a mão.

Despediram-se desajeitadamente como dois bobos, no ponto de ônibus de Mônica. Lino tomava o ônibus mais a frente, logo depois de uma caminhada só. Mônica cogitou calada que seria mais romântico se tivessem que contar com um carro ao invés do ônibus, mas segundo Lino seu carro estava no concerto e iria pegá-lo pela semana.

Um beijinho desajeitado na boca sem língua, pudico, e se despediram enfim. Ela seguia para casa com aquela sensação de não ter feito alguma coisa que muito gostaria: gostaria de ter caído na água do mar. Mas, estava tão bonito o palhacinho de chapéu australiano que,... não se esforçaria por encontrar motivo para zangar-se com ele.

Encontraram-se durante dois anos, e a cada encontro Mônica procurava um motivo para perdoar seu palhacinho. Casaram-se em uma cerimônia que envolvia toda a família do noivo e da noiva, na igreja de São Francisco de Assis. Estavam impecavelmente vestidos na ocasião, se não fosse o fato de Lino usar meias escocesas bem coloridas.

Um dia vieram os filhos, que puxaram o lado da mãe, mais ligados à realidade que o pai. Este passou a trabalhar em um emprego público que foi o bastante para alimentar toda a família de quatro membros. Também trocou o carro antigo, um Fiat 147, por um carro mais novo, ainda que não fosse do ano.

E então quis a fada responsável pelos casamentos que em um dia comum, como qualquer outro da semana, Lino abordasse Mônica, “Sobre aquela noite...” Prosseguiu ele, “Aquela noite descobri em você um quê de não saber o que dizer, e até hoje não sei o quê. Mas não me tome por desmiolado em querer dizer o que não consigo, por favor.”

Mônica ficou séria e desabou no sofá da sala em que estavam. Uma flecha havia atravessado o ar pesado entre eles e se alojado no coração. Sentindo um esboço da lancinante dor de uma flechada ficou imóvel completamente; apenas os olhos pareciam fechar-se e abrir-se de vez em quando.

“Quero dizer que não esperava encontrá-la em um lugar tão pouco propício, em uma data tão preciosa para muitos dos presentes, da forma fácil como encontrei. E ouso dizer que ouvi uma voz ao meu ombro dizer que eras tu.” Pelo fato de chamá-la por tu Mônica reconhecia no marido sua maneira incomum de expressar o querer bem.

Para muitos, Lino era um parvo, um idiota. Para ela, estava ali seu companheiro, seu bufão particular, para ser reconhecido apenas na intimidade, para aqueles que dele gostassem. Seus irmãos o viam como “o sem-noção.” Era lento demais para a convivência social. Ela o via como seu valioso momo, um bufão. Via beleza nisso.

No natal deste ano, Mônica expressou seu amor pelo marido de uma forma particular. Ela o fez vestir-se de terno com gravata e, de pés no chão os dois, dançaram em volta da árvore de natal uma música com trompetes: um jazz casual romântico. No outro dia, porque chovia, não foram à praia. Mas trocaram votos de fidelidade e alianças novas.