O docinho de leite (novembro de 2015)

“Eu já lhe contei a estória daquele homem que vendia algodão doce em frente a uma igreja e passados cinquenta anos ganhou uma rifa milionária da igreja?” Perguntou-lhe o homem grande e branco, encostado a uma cadeira grande estofada, “ah papai, essa você me contou semana passada, na cozinha, enquanto a gente cozinhava.”

O homem grande, disfarçando o ar de cansaço, soltou um suspiro quase tão grande quanto a sala onde estava com o filho. Eram nove horas da noite e já estavam alí havia uma hora, mas o menino cismava em não querer ir dormir. De seu lado, o pai tentava contar uma estória para dormir, mas já contara a terceira e nada feito.

A primeira história lhe deu medo, e pediu para que o pai parasse. A segunda, muito interessante, era sobre uma jovenzinha que cozinhou mingau até ele derramar da panela e inundar o mundo. A estória arrancou-lhe risadas e pedidos para que parasse, porque lhe provocava cócegas.

Cláudio, o homem grande, pegou o menino no colo e lançou-lhe para o alto. Amparou-o nos dois braços estendidos e depois dependurou-o no ombro. O menino sacudia as pernas, demonstrando sua aprovação dando gargalhadas. Foram até a cozinha e o pai repousou o menino em uma cadeira, junto à mesa.

O moleque já sabia como se comportar para forçar o pai a levá-lo para a cozinha. Era um roteiro certo: primeiro, fazia desgostar das estórias que lhe contava; logo depois debandavam para a cozinha para fazer doce de leite. Ao menos uma vez por semana seu esforço era coroado com a noite de docinho na cozinha.

O homem grande e branco procurava fazê-lo entender que aquela era a última vez. Que não intencionava acostumá-lo mal. Assegurava que não cederia mais a suas chantagens na hora de ir aconchegar-se na cama. Nessas horas o menino concordava sempre com a cabeça, mas não escondia sua satisfação e a crença de que haveria ainda outras vezes.

Cláudio retirou do armário uma lata de leite condensado e um litro de leite. O menino, já posicionado a seu lado e de pés no chão, olhava atento para as mãos do pai. Primeiro, Cláudio despejou o leite na panela. Depois, sob os olhos atentos do pequeno, abriu a lata de leite condensado e despejou o conteúdo também na panela.

Lucas deu um salto e agarrou a latinha. Enfiou dentro a mão e levou-a direto à boca enquanto o pai fingia não ver o feito da criança. Pondo a panela no fogo, levantou Lucas novamente em seus braços e prostrou-o mais uma vez na cadeira. Depois sentou-se à sua frente, rente à mesa. Prometeu contar a estória para dormir mais uma vez.

Cláudio, o homem grande, lançou um olhar para o fogão e outro olhar para o relógio na parede. Eram dez horas e cinquenta minutos e sua esposa, como de costume (calculou), já estava a dormir havia bem umas duas horas. A tarefa de colocar Lucas na cama era atribuída a ele, concordada pelos dois. Cedo, no dia seguinte, entrava em cena a mamãe.

No dia seguinte, o menino estaria fora da cama às sete horas da manhã para o café e para arrumar-se para a escola. Esta parte das obrigações com Lucas ficava totalmente por conta de Joana. Para Cláudio, restava somente a difícil lida de fazer o sempre atento e sempre desperto Lucas dormir. Mas o pai do menino divertia-se com essa tarefa.

Segurando o menino pela mão direita, prometeu contar-lhe a história da garotinha do mingau, mesmo perante protestos: “mas, papai, de novo?” E Cláudio argumentou, “essa história lhe causou cócegas e risadas, estou errado? Mas, se quiser, posso contar a história da Moura torta, a estória que você não gostou... que lhe deu medo.”

O menino levantou-se da mesa, acercou-se de seu pai e passou a desfechar murros contra sua barriga, “não, eu tenho medo eu tenho medo papai.” Cláudio riu e concordou com o menino, levantando-o do chão e acomodando-o em seu colo. Lançou um olhar atento sobre o fogão, mas tudo corria bem. Deu um beijo na testa do pequeno Lucas.

“E então?” Prosseguiu o pai com a estória do mingau. Narrou a estória, assim: que a pequena garotinha era muito pobre e pediu aos anjos ajuda. Só que, por causa de sua gula, ao ganhar uma mistura de uma velhinha simpática que apareceu-lhe à porta de casa, o mingau passou a sair da panela espalhando-se pelo chão e pela floresta afora.

Sim, a garotinha vivia em uma floresta. A isto, reagiu o menino, “papai, em que hora vai surgir o lobo nessa estória? Semana passada você esqueceu de falar do lobo.” Mas Cláudio estabeleceu que a estória do lobo era outra, e que esta estória era a estória de uma linda garotinha vítima de uma bruxa má que lhe lançou um encanto.

Lucas calou-se e permitiu que o pai contasse toda estória; e enquanto contava pousava Cláudio seus olhos sobre o doce de leite que estava no fogo. Interrompeu a estória por um instante apenas, para adicionar açúcar na panela. Teve que deixar o menino encostado à espádua da cadeira triunfalmente sonolento. O relógio marcava meia-noite.

Terminada a estória, terminado o doce. O homem grande suspendeu o filho pelas duas mãos mole, quase inerte, acomodando-o sentado à mesa. Em um prato pequeno despejou um pouco de doce de leite e uma fatia de queijo branco. O menino recobrou a atenção rapidamente, posto que o principal da noite era comer o doce.

Enrolou em uma colher o queijo com o docinho e levou-os à boca, mas estava tão quente que teve que devolvê-los ao prato. Disse-lhe o pai, “não se apresse, não vai queimar a boca.” Cláudio também serviu-se do queijo e do doce, e devolveu o conteúdo da panela para uma pequena vasilha de louça branca. Pôs tudo na geladeira.

Devorado o doce, o menino fez que deslizaria da cadeira, cochilando. O homem grande tomou-o no colo com cuidado para não acordá-lo e pé ante pé atravessou a sala com o filho até o quarto. Deitou-o na cama e cobriu-o com uma manta azul estampada. Fazia um pouco de frio esta noite, então melhor aquecê-lo. Apagou a luz e foi dormir.