A HISTÓRIA DE PRETINHO

Todos os dias era a mesma coisa: acordava de manhã bem cedo, tipo 6:00h, bebia dois copos de água, tomava banho e saía para tomar café na padaria.

No caminho para a padaria, passava em frente a venda do Seu Zé. Na ida era: "Bom dia, Seu Zé!". Na volta, sempre parava para comprar alguma coisa...

Tinha um cachorrinho vira-lata, que chamavam de Pretinho. Ele até era Pretinho mesmo, mas o nome não era por isso, não. Seu antigo dono (que não o tratava muito bem), certa vez, derramou (de propósito) uma lata de tinta preta no pobre do animalzinho e deixou secar a tinta no cãozinho. Seu Zé, com a ajuda de outros comerciantes, removeu a tinta do bichinho.

Sempre tentávamos tirar o cachorro das mãos daquele que considerávamos um traste, mas o coitado do Pretinho, fiel ao dono, como todo cão, não permitia que ninguém chegasse perto.

Tião, o bebum da cidade, morava na rua com Pretinho, a quem chamava de "Infeliz". Morreu, vítima de seu próprio vício. Pretinho, no começo, não queria saber da aproximação de ninguém, a não ser, na hora de comer (sempre foi alimentado por todos na cidade, menos pelo dono). Aos poucos, foi permitindo a um e a outro, uma maior aproximação.

O Amor é infalível! Sempre...

Pretinho, de certa forma, percebeu o quanto era amado por toda a cidade. Tanto que não se deixou levar por ninguém. Preferiu continuar nas ruas. Então, os comerciantes solicitaram (com êxito) ao Prefeito, que permitisse a construção de uma bela e segura casinha para Pretinho.

Havia uma escala diária entre moradores e comerciantes daquela pequenina e pacata cidade, para alimentar e cuidar das necessidades de Pretinho, pois todos o amavam.

A casa de Pretinho ficava no meu caminho para a padaria e eu sempre brincava com ele na ida e na volta.

Mas naquele dia foi diferente. Após passar pela venda do Seu Zé, quando passei pela casa de Pretinho, ele não estava. Tudo bem, nem sempre ele estava mesmo, mas quando não estava, era só chamar por ele, que ele vinha correndo de onde estivesse.

Vila Velha, a nossa cidade, é uma cidadezinha pequena, que se limita a uma praça com tudo em volta. Poucos habitantes e pouco pra se fazer...

Chamei por Pretinho e ele... nada

Embora, eu tenha estranhado um pouco, segui até a padaria. Nesse dia, resolvi não tomar café na padaria. Comprei alguns pães com Sr. João e voltei para casa.

No caminho, novamente passei pela casinha de Pretinho e, mais uma vez, gritei por ele: - Pretinho! Pretinho! - Mas, Pretinho não dava nenhum sinal.

Cheguei em casa, tomei meu café e, muito inconformado e preocupado com o misterioso sumiço de Pretinho, voltei para a rua. Passei o dia inteiro à procura de Pretinho, até que um certo "uivo" vindo do cemitério, me chamou a atenção. Apesar de já estar escurecendo, resolvi entrar no cemitério municipal atrás daquele som que parecia um choro amargurado de um cão. Após alguns passos, lá estava Pretinho, próximo a uma cova rasa, onde estava sepultado Tião.

Lembrei de quando Tião me contou como conheceu Pretinho. Como um dos moradores mais antigos da cidade, vi Tião chegar a ela com aquele cachorrinho. Cabisbaixo, ele sentou à beira da calçada, próxima à minha casa. Então, resolvi me aproximar para saber se estava precisando de algo. Espontaneamente, Tião, meio soluçante, começou a contar sua história (e me fez jurar segredo).

Sua antiga namorada, grávida de Tião, que era um pintor de paredes, não aguentava mais aquela vida que, embora honesta, era simples.

Certa vez, Tião estava fazendo um serviço para um ricaço, que se encantou por Madalena, a namorada de Tião.

Quando o filho do casal nasceu, Madalena resolveu sair pelo mundo com o ricaço, deixando a criança com Tião.

Tião criou com louvores aquele garoto, que foi crescendo amando os animais e toda a natureza.

Certa vez, numa viagem, Tião viu cruzar à frente de seu carro, um cachorrinho. Tião tentou desviar e perdeu o controle da direção e sofreu um grave acidente. Tião escapou quase ileso, mas seu filho não resistiu...

Porém, Quinzinho (como era chamado Joaquim, o seu filho) teve tempo de pedir ao pai que cuidasse daquele cãozinho, para que ele não corresse mais riscos. Tião saiu em busca do cachorrinho e quando o encontrou, pegou-o para si.

Desde então, Tião cuidou do cachorrinho, como se seu próprio filho animasse o bichinho.

Entretanto, a morte de Quinzinho nunca foi superada e Tião começou a beber descontroladamente para "afogar as mágoas". Acontece que, quando Tião bebia, lembrava do motivo que o fez sofrer o acidente: desviou o carro para não atropelar Pretinho. Isso fazia com que Tião, quando ébrio, culpasse Pretinho pela morte de seu filho e, assim, todas as vezes que Tião estava bêbado, maltratava o pobre cãozinho. Pretinho, por sua vez, parecia compreender tudo, do seu jeito, por isso, permanecia ao lado de Tião, como quem estivesse a pagar uma dívida.

Lembrei de tudo isso, naquele instante, vendo Pretinho ao lado daquela cova... Chamei Pretinho algumas vezes, mas percebi que deveria respeitar esse momento.

Voltando para casa, fui passando em cada comércio, para avisar às pessoas, onde estava Pretinho e para tranquilizá-los de que logo, ele estaria de volta. Depois, fui direto pra minha casa, pois estava exausto e com muita fome.

Quando fui deitar, estava certo que não demoraria a adormecer, não me aguentava de sono...

De repente, escutei um latido que parecia vir de frente da minha casa... Levantei-me e me dirigi à janela de meu quarto, que fica de frente para a rua. Lá estava Pretinho, alegre, balançando o rabo, saltitante e latindo sem parar!

Preocupado com a possibilidade de outras pessoas acordarem, rapidamente saí de casa, do jeito que estava e fui até ele.

Assim que me viu sair de casa, Pretinho começou a andar. Em alguns momentos, dava uma corridinha, como se quisesse me acelerar, mas sempre dava uma parada, olhava para trás e latia, antes de continuar. Deixando claro que estava querendo que eu o seguisse.

Trilhamos por caminhos que eu não conhecia, ou pelo menos, não estava reconhecendo por causa da escuridão e do cansaço.

De repente, parecíamos ter chegado em alguma outra praça, de outra cidade, sei lá. Era um lugar habitado, com algumas pessoas conversando, caminhando, se divertindo...

Nesse instante, Pretinho pareceu me ignorar e saiu em disparada, me deixando para trás, apesar dos meus apelos para que ele me esperasse. Mas a corrida desenfreada de Pretinho tinha um motivo: Estavam à sua espera, Tião e Quinzinho, que o receberam com grande alegria!

Os três ficaram juntos abraçados, por um bom tempo. Pelo menos, essa foi a sensação que tive...

Pensei em me aproximar, mas fui impedido por fortes batidas em minha porta.

Acordei assustado. Estivera sonhando. As batidas eram fortes e insistentes. Quando atendi, estavam Seu Zé da venda e Sr. João da padaria. Ambos estavam com ares de melancolia. Nenhum dos dois resolvera trabalhar naquela manhã. Não fariam falta. Todos os poucos habitantes de Vila Velha estavam no cemitério da cidade, para onde Seu Zé e Sr. João me levaram.

No caminho, senti um frio na barriga, como se soubesse o que iria encontrar. De fato, ao chegar lá, avistei Pretinho serenamente deitado ao lado da cova de seu antigo dono Tião. Pretinho não respirava. Estava morto. As pessoas em volta, choravam e lamentavam, tanto a morte de Pretinho, quanto o fato disso ter acontecido ao lado da cova de Tião. Ninguém sabia da história e não consideravam Tião merecedor da companhia de Pretinho. Foi nesse momento que me senti na obrigação de quebrar a promessa feita a Tião e revelar toda a história.

Comovido, o povo de Vila Velha resolveu solicitar ao Prefeito (presente no local), uma homenagem a Tião e Pretinho. Sugeri que se estendesse a Quinzinho. Contei que tinha sonhado com os três e descrevi, posteriormente, a última imagem dos três se abraçando, para um artista da cidade. E assim, foi erguido na praça da cidade, uma estátua de Tião, Quinzinho e Pretinho, juntos, num abraço que comovia a todos...

Hoje sei que não tive um sonho. Pretinho estava indo se encontrar com seu antigo dono Tião e o menino Quinzinho, responsável por proporcionar alguém para cuidar dele. Tião, embora tivesse suas fraquezas, protegia Pretinho das ruas... Entendi que Pretinho queria que eu testemunhasse aquele momento e levasse a todos, aquela história, recuperando a dignidade de seu dono.

Olhando agora para esse monumento na praça, apesar das incontidas lágrimas que derramo, não tenho como evitar também, um sorriso...

O Amor é infalível! Sempre...

Adriano Soares
Enviado por Adriano Soares em 26/11/2015
Reeditado em 01/12/2015
Código do texto: T5461781
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