Ao encontro da Luz
(a transição)
 
 - Que barulheira é essa, logo cedo?
 
- São os carros passando na rua. Hoje é segunda-feira. Esqueceu de novo?
 
- Ah, sim. Todo mundo indo trabalhar, à escola, essas coisas.
 
- Dia de semana é sempre desse jeito. Sábado acalma.
 
- Rosilda, pegue lápis e papel. Quero ditar uma poesia.
 
Não sei quanto tempo estive naquele leito, nem exatamente como fui parar ali. Dia após dia, semana após semana.
 
Sem dor. Apenas cançaso. Desejo imenso de dormir. Mergulhar em sono profundo e descansar para sempre. Nenhum de levantar. Tentei algumas vezes, mas o máximo que conseguia era chegar até o banheiro ao lado. Poucos passos. Voltava arfante, mas contente por não depender de ninguém nos momentos mais íntimos. Pelo menos isso.
 
- Rosilda, está pronta? Vou dizer a poesia.
 
Balbuciei versos com a voz cada vez mais fraca. Um após outro. Talvez duas ou três estrofes. Devagar, sem repetir. As pálpebras pesando até não conseguir mais abri-las.
 
De um plano ligeiramente acima, contemplei o meu corpo inerte, abandonado sobre o lençol hospitalar. Rosilda estava sentada, impecavelmente aprumada no espaldar da cadeira junto à cama, elegante no uniforme de enfermeira. Apoiava nas coxas um pequeno maço de papel ofício, pressionando-o levemente com a mão esquerda. Com a direita, segurava um lápis preto serpenteante sobre a folha branca. Só agora eu reparava como eram bonitas as suas mãos, tão alvas, tão miúdas, delicadas. Lembrei-me de como eram macias. E doce a sua voz. Senti vontade de lhe dar um beijo de despedida. Tarde demais.
 
Por fim, vi a imagem desvanecer-se lentamente diante dos meus olhos envelhecidos, até não poder distinguir mais nada. Então, virei-me para a Luz que me chamava e finalmente parti ao encontro do meu dia.


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N. do A. – Na ilustração, Impressão, Sol Nascente de Claude Monet (França, 1840-1926).
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 30/09/2015
Reeditado em 04/06/2021
Código do texto: T5399315
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