A esquina do adeus (agosto de 2015)

Era uma segunda-feira de feriado. Não um feriado como qualquer outro – era feriado de Nossa Senhora Aparecida. As ruas em torno de minha casa estavam silenciosas e não se via tráfico de veículos nas ruas. O supermercado, que abria normalmente de segunda a segunda, tinha as portas cerradas e um cartaz dizia: DE VOLTA NA TERÇA.

Aquela manhã acordara com dor-de-cabeça. Quando acordei eram nove horas e por conta da dor na cabeça tomei um comprimido. Depois de tomar um copo grande de leite, andei pela casa ainda sonolento e, abrindo a porta de entrada, saí e sentei-me na escada que conduzia ao primeiro andar, onde mora minha mãe.

Aquela manhã parecia singular. Observei de cima o jardim que ocupava o entorno da casa e os muitos arvoredos e margaridas não haviam sido molhados. Algo inédito, pois não importava qual fosse o dia da semana, mamãe sempre regava as plantas da casa. Dia de Santa Maria, mas não era uma desculpa para não regar as margaridas. Ao menos elas.

Observei a formação das nuvens no céu. Não daria praia, porque o tempo não era de sol. Um céu cor de chumbo ameaçava com chuva. Fiquei buscando alternativas para o que fazer aquela manhã, mas pouco vinha à cabeça. Pensei em Xande e notei que, de fato, acordei pensando em Xande.

Pensei em acordá-lo passadas as dez e convidá-lo para tomar uma cerveja no boteco da moda, próximo à casa dele. Precisávamos conversar... Eis que nosso amigo Líbano morrera na sexta-feira e me haviam avisado no dia anterior, muito tarde da noite. Por esse motivo, e por não querer chocar Xande, contaria para ele na manhã do feriado.

Levantei da escada e desci de pé-em-pé curioso, perscrutando as janelas de baixo da casa, procurando algum sinal de minha mãe. Mas as cortinas estavam ainda fechadas, e não havia som nenhum naquele andar da casa. Pensei o melhor: saiu para uma caminhada, deu uma volta para visitar uma carola amiga da igreja.

Mamãe era carola de igreja. Assistia à missa todos os dias pelas manhãs. Nos finais de semana, ajudava na preparação da missa para os casamentos e, sempre que havia, nas quermesses também. Organizava as coletas de doações para o bazar e, sempre que ficava sabendo, visitava as pessoas doentes da comunidade.

Amava flores. Tinha no jardim duas dezenas de árvores de flor, dentre elas se destacando as pequenas margaridas e os arbustos de bem-me-quer. Trazia enxertos de rosa e plantava, mas nunca conseguira fazer uma roseira brotar. As árvores de fato eram muitas. Havia uma goiabeira, uma figueira, e um abacateiro. Todos davam frutos.

E aquele dia ela não acordara cedo para regar as plantas do jardim. Aquele jardim de onde orgulhosamente saíam as muitas flores dos arranjos no altar da igreja. Fiquei curioso mas, sabendo da ocupação de mamãe com as outras colegas religiosas, não me permiti ir mais adiante com minha preocupação. Nada de bater na porta de sua casa.

Mais importante seria ligar para Xande. Eram quase dez horas da manhã e, dada a proximidade da hora de ligar para ele pus-me apressadamente a tirar a roupa e procurar uma toalha limpar para o banho. Entrei com coragem embaixo do chuveiro de água gelada ensaiando uma cantoria que me fizesse esquecer do frio.

E me sequei com uma toalha branca felpuda sentando na beirada da cama, atento para as notícias na televisão. No noticiário internacional, problemas com os terroristas árabes. No noticiário nacional, como esperado, havia uma cobertura nacional das festividades de comemoração do dia da padroeira. Havia imagens de várias capitais do país.

Dez horas e quinze minutos. Hora de ligar pro Xande. De camisa e jeans mas ainda descalço, sentei-me do outro lado da cama rente ao criado-mudo onde estava o aparelho de telefone. Liguei para o Xande e ele atendeu. Pareceu-me que eu o acordara, mas ele não parecia enraivecido por este motivo. Aceitou animado meu convite para a birita.

Então, combinamos: dentro de meia-hora passava em sua casa de carro para buscá-lo e seguirmos juntos para o barzinho próximo à sua casa. Lá, além da birita, comeríamos alguma coisa. Trato feito, desligamos e eu fui em busca de um calçado para combinar com minha camisa de malha verde-escura. Encontrei um tênis branco velho que serviria.

Desci as escadas pisando pesado mas com cuidado para não desabar no enorme vão da escada que se abria para o jardim de mamãe. Abri a garagem, entrei no carro e dei partida. Dei a marcha à ré e retirei o veículo. Depois, voltei e fechei a garagem, trancando-a com o cadeado. Voltei para o carro e acelerei, já na rua de casa.

Com o trânsito bom, com poucos veículos circulando pelas ruas, não demorei mais de vinte minutos para chegar até a casa de Xande. Buzinei e ele abriu o portão da casa. Abriu a porta do carro e entrou. Aí deu-me um abraço e um beijo no rosto e perguntou, mais por pura obrigação, “e aí? Quais as novidades?” Ao que respondi, “depois.”

O bar estava fervilhando, contrariando o que eu observara nas ruas da cidade. Só havia para nós um mesa, colada em um cantinho do bar. Nós nos sentamos e íamos pedir uma cerveja bem gelada, mas o garçom (que já nos conhecia), se adiantou e nos trouxe a cerveja e dois copos pequenos, bem a nosso gosto.

A primeira cerveja foi para matar a sede. Embora não houvesse sol, o mormaço do dia dava vontade de tomar um galão de cerveja gelada. Pedimos a segunda, que veio acompanhada de uma porção de quibe frito. Comi um quibezinho e virei o copo de uma vez só. Era para matar a sede. Xande também virou o copo.

Foi aí que lhe disse, “Lembra do Líbano?” Respondeu-me que sim. Eu acrescentei, “Morreu.” Os olhos de Xande saltaram de suas órbitas e ele engasgou com o quibe. Tossindo ainda, me disse que não acreditava. “Logo o Líbano, que tinha uma saúde de atleta... não é possível!” Eu fiz cara de descontentamento, e silenciamos.

Eu me lembro de ter perguntado se pedíamos mais uma cerveja, e que Xande disse que “não, por enquanto.” Ele queria ir mais devagar, procurando assimilar melhor a ideia da morte de Líbano. “Morreu de quê?” Lembro que me perguntou. Eu lhe respondi, “Foi obra de um infarte, algo totalmente inesperado em se tratando do Líbano, um atleta.”

Nisso, concordávamos os dois plenamente. Como imaginar um atleta como o nosso amigo morto por uma doença oportunista como uma doença cardíaca? Eu acrescentei, “Quem o encontrou morto em casa foi o Zeca, ao retornar do trabalho.” E emendei, “De ontem para cá, está completamente desconsolado.”

Líbano, nosso amigo querido, era viciado em esportes. Em especial corridas. Fazia exercícios diariamente, e em tempos de corridas pela cidade participava de todos os eventos. Quem lhe dava apoio para as atividades era o Zeca, que não era adepto de esportes mas gostava muito do Líbano.

Não poderíamos ir para o enterro do nosso amigo, isso já estava implícito em nossa conversa. Ele havia se mudado fazia anos a trabalho para uma empresa fabricante de eletrodomésticos na zona franca de Manaus. Xande concordou comigo que seria sensível se telefonasse à noite para o Zeca e apresentasse seus sentimentos.

Líbano não era adepto de nenhuma religião organizada. Como disse uma vez, no tempo que, amigos, compartilhamos juntos (antes que fosse para Manaus), ele era budista e não desejava nada desse mundo. Mas emendava,“Talvez um liquidificador Walita com quinhentos Watts de potência.” Lembrando disso, rimos muito os dois.

Um silêncio grande surgiu do último gole da segunda garrafa de cerveja. Anestesiados pela bebida e pela lembrança da morte de Líbano, ficamos calados por uns vinte minutos. Xande, mais tocado pelas emoções do que eu, fez que queria chorar. Mas, a tempo, eu engatei com o garçom o pedido de mais uma garrafa de cerveja.

No lapso de uma hora estávamos os dois no carro. Convidara Xande para dar uma passada lá em casa e ele aceitou: Demo-nos as mãos. Em casa, poderíamos ouvir as músicas que nos lembravam do Líbano. Líbano amava música clássica e tinha afeição por Brahms. Então, ouviríamos Brahms e conversaríamos sobre o Líbano.

Logo ao entrar com o carro na rua, na esquina de casa, dei de cara com mamãe. Ela retornava para casa com uma cara fechada, triste. Ao abordá-la, fiquei sabendo que uma amiga da igreja havia morrido e automaticamente pensei em Líbano. Mamãe conhecia Líbano, mas ao vê-la tão consternada pela amiga, escolhi não falar nada a ela.

Cumprimentamo-nos e mamãe deu um abraço em Xande. Mamãe sempre gostou de Xande. Depois fez menção de chegarmos para um cafezinho. Xande sempre ficava sem graça com mamãe, mas este dia era um dia diferente, e aceitamos ficar para uma conversa em volta de uma xícara de café fresco – assim aproveitando parte do feriado.

Mamãe foi direto ao assunto: dona Rosa era uma das mulheres mais importantes para a comunidade. Era muito atuante e tinha um ânimo invejável. Conduzia todas as tarefas mais importantes na igreja. O filho a encontrara aquela manhã, caída no chão ao lado da cama, e em seguida telefonou para mamãe.

Não era ainda seis e meia da manhã quando mamãe recebeu o telefonema. Atendeu de pronto ao chamado do filho de dona Rosa e saiu pela rua caminhando a passos largos. Não quis me acordar para que eu lhe desse uma carona. E a casa de dona Rosa ficava a uns seis quarteirões dali, mas mamãe tinha um fôlego de causar inveja. Foi sozinha.

Chegando à casa em questão, estavam o marido de dona Rosa, uma vizinha e o filho que encontrara o corpo. Todos os três aparentavam calma, como se diante de uma situação de alguma forma já esperada. Dona Rosa tinha uma condição cardíaca e vinha se tratando disso havia mais de dois anos.

E, conduziu mamãe a conversa por mais um tempo, ressaltando as qualidades de dona Rosa por várias vezes, algumas até se repetindo. Eu eu Xande prestávamos atenção ao relato de mamãe, mas sentíamos de alguma forma anestesiados por conta da birita que tomamos mais cedo.

O café ficou pronto e mamãe o coou ao mesmo tempo que fazia uma tentativa de mudar de assunto. Tentou falar sobre o tempo, porque tinha certeza de que iria chover muito mais à tarde, mas não conseguiu mudar de assunto porque teria de sair (com ou sem chuva) para o velório. Serviu-nos o café e tomamos rapidamente uma xícara.

Xande falou para mamãe que estava muito animado com o novo emprego, em uma escola de um bairro vizinho. Xande era professor de filosofia. Discorreu lindamente sobre os alunos e sobre a afeição que sentiam por ele. Estava mesmo encantado com o trabalho e aquilo para mim era de dar gosto.

Eu me satisfazia com meu trabalho na administração da prefeitura. As pessoas eram muito amigas e nós nos dávamos muito bem. Mas, diferente de Xande, muitos de meus dias de trabalho eram um desafio além da cama. Quero dizer, tinha vontade de não levantar-me dalí, de dormir o dia inteiro. Meu trabalho podia, às vezes, ser muito chato.

Cutuquei Xande embaixo da mesa com o pé, acenando que se apressasse ou ficaríamos a tarde toda ali. Tínhamos o direito de chorar os nossos mortos da mesma forma que mamãe. Então, lembrei a ela que deveria tomar um banho e preparar-se para os serviços fúnebres de dona Rosa. Ela agradeceu e então nós nos despedimos todos.

Eu e Xande subimos a escada e nos jogamos cada um sobre um sofá. Refletíamos sobre os acontecimentos do dia. Levantei-me e procurei o cd de uma sinfonia de Brahms na prateleira, mas tudo que encontrei foi um sonata para piano. Inseri o cd no tocador e me atirei sobre as almofadas do sofá. O que se seguiu foi puro silêncio e Brahms.