Notas de um outro alguém - Breve Ensaio

Notas de um outro alguém - Breve Ensaio (Fernando Paz)

Como seria se duas almas habitassem o mesmo corpo? Se vivêssemos com a permanente lembrança do que fomos em outra existência? Loucura? Foi assim que tudo começou...

Na mais tenra infância, ainda criança temia dormir e não mais acordar. Apesar dos seus meros 4 anos, não entendia o corpo de criança que estava a habitar. Se via um homem feito, mas não entendia ao certo o que acontecia. Outro nome, outro corpo, mas ainda assim ele mesmo.

Esse duelo perdurou até os 7 anos, quando deixando de resistir assumiu sua personalidade presente e passou a ignorar

quaisquer conflitos interiores.

Se encantou pela música e mesmo sem nada saber tocar, ao ouvir Moonlight Sonata de Beethoven ao piano, quis loucamente aprender.

Mas como um desencanto recebeu um violão. Mal sabia que por muito tempo, seria sua grande companhia.

Na adolescência tudo voltaria com dificuldade de relacionamentos e uma timidez opressora. Uma depressão começou a escurecer seus passos. Novamente, se sentia diferente, sem conseguir participar da vida cotidiana e habitual.

Pensava e sentia demais, facilmente se sentia deslocado no que pareciam caminhos comuns. Se sentia morto em plena vida e nisto, passou a desejar e ansiar de fato a própria morte.

Costumava vagar de madrugada pelas ruas sem medo e ficava admirando os detalhes, as pessoas, as ruas, os prédios...

Buscando sentido para a própria existência...

Se sentia um espirito, vagando invisível e transpassando olhares que não o viam. Certa noite, compulsivamente chorando,

caminhou até a praia, sentou na beirada da areia olhando o infinito horizonte do mar. E novamente aquele homem da infância

retornou e dividiu seu corpo como se dois tempos simultâneos coabitassem o mesmo espaço. Mas pela primeira vez, como um

delírio viu além...

Sobreposta a vida presente, como uma projeção holográfica, se viu em pleno século XIX. Agora, era um pianista talentoso e vaidoso.

Dado a todos os vícios.. bebidas, charutos e sexo... Tocava para a aristocracia francesa em grandes saraus, frequentando de

palácios a boemias. Sua arte era sedutora...e ao bel prazer a utilizava para manipular e induzir as pessoas com quem convivia.

Obtendo de vantagens na corte a relações lascivas ao seu prazer. Não amava a ninguém, senão a si mesmo, mas nem disso tinha consciência. E sua existência assim teria seguido se a tuberculose não o houvera parado. Se tornou recluso em uma região longínqua e fria. Sozinho com o seu piano, um cálice de vinho, velas e sua permanente tosse ensaguentada. Seu corpo fragilizado, não resistiria por muito tempo e brevemente faleceu...mas para sua surpresa, a consciência continuava viva e não conseguia se distanciar do corpo que agora jazia rígido e em putrefação. Sentia como se assistisse a própria morte, sem que nada pudesse fazer...

E foi quando para o presente em um forte impacto retornasse... De volta para o mar...mas agora, novamente com duas almas dentro de si...

Passado e presente, duelando por um mesmo espaço..Num lapso entendia a dificuldade de relacionamentos de quem muitos deles tinha se aproveitado em outro tempo...sua asma dos velhos charutos.. sua agitação em ambientes festivos relembrando seus excessos... e seu violão.. que insistia em querer tocar como um piano...E uma carência que comumente o consumia em disparate aos repletos círculos do passado que se via cercado. A multidão

virou solidão.

E nessa compreensão, um alivio repentinamente o tocou. Uma aceitação de todas as dificuldades, como se presente respondesse ao passado. Naquela noite em mais nada pensou, olhou para o céu, a lua que imensa refletia nas águas do mar... e ali mergulhou como um novo batismo. Naquele ponto, suas partes se fundiram e voltou a ser apenas UM...

Da água saiu um novo homem e simplesmente seguiu...

Fernando Paz
Enviado por Fernando Paz em 17/07/2015
Código do texto: T5313694
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