TESTA

 

O avô sempre sentado naquelas cadeiras de fios de plástico. As longas pernas ficavam cruzadas, e no pé esquerdo pendia e balançava uma sandália de couro. Ele sabia: sentado era bem mais alto. Então disparava sobre os óculos raios que saiam de seus flamejantes olhos azuis. Franzia a terra, desaprovando tudo. Para a netaiada que corria para todo lado em gritaria de maritacas, a coisa ficou clara: "quando ele franze a testa, acabou a festa". Silêncio sepulcral. Os meninos foram para fora, brincar no rego d'água. Esse território era jurisdição do Tio Nenê, onde o avô não tinha autoridade,  e que nós tratávamos como se fosse um no mans land. Mas o Tio Nenê era o Tio Nêne, sessenta anos com cabeça de doze. Diziam ser "retardado". Mas não, era só uma criança bastante "erada". Pisávamos na água, sujávamos o rego e criávamos piscina de porcos. Então Tio Nenê empunhava um facão de um metro de comprimento e corria atrás das capetadas de crianças. Ele xingava e xingava, ele podia xingar a vontade, era Tio Nenê! Pra gente era brincadeira. Para mães e pais, preocupação. Para o tio-criança, transgressão punida com o pleno e legítimo exercício da autoridade.