Estalar

No terceiro andar do prédio que, jurava por Deus, se inclinava durante a noite, ela observava as ruas do centro da cidade. Gostava de imaginar para onde cada pessoa ia e o que levavam em suas sacolas e bolsas. Passou também a construir possibilidades de vida dos que lhe saltavam aos olhos e a formar casais que lhe soavam bem.

Havia uma velhinha que trazia comida aos cães abandonados. Ela pensava na velhinha magra de olhos doces e cabelos curtos em sua casa, preparando as vasilhas para os cães e sua felicidade serena ao fazer isso.

Todas as terças, uma mocinha passava por ali com um livro novo nas mãos que comprara na livraria da outra rua — ela notava pela sacola. Sorria ao ver, em suas fantasias, a moça preenchendo um espaço na estante. Para ela, a jovem aspirava ser uma escritora. É... devia ser.

Notava também a morena alta que sempre cruzava com o homem de paletó, apressado. Chegava a pensar que ambos planejavam os horários para se encontrarem naquele momento — um instante mágico.

A moça do terceiro andar pegou um copo de café, acendeu um cigarro e sorriu. Olhou para o céu cinza e para o movimento dos carros.

Foi quando viu alguém que não percebera até então. Todos os dias observava cada um, mas aquela garotinha, sentada no ponto de ônibus, não. A menina não se movia. Olhava pra baixo (fitando os pés?). Olhava para baixo e não movia um músculo, parecia que nem respirava direito. Então a garota olhou para cima e, por um instinto divino, como diria Campos, olhou para a moça do prédio.

E o mundo se desfez. Ao olhar da menina, a escritora, o casal

provável, a velha solitária, tudo sumiu. E ela continuava cravando os olhos por um tempo infinito.

A moça do terceiro andar soube, como um estalo num vazio. Possibilidades. Personagens. E a vida continuou.

Ana Eduarda
Enviado por Ana Eduarda em 22/06/2015
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