Uma carta para waterloo (fevereiro de 2015)

Rua Waterloo, número 197, Anglônia. Jean Lucas e Sávio esperam em casa ansiosamente por uma correspondência. Moram nesta pequena cidade no alto da serra, fundada pelos ingleses ao longo da ferrovia que construíram. Ainda hoje, em dois mil e dez, é possível avistar a velha maria-fumaça que leva e traz passageiros do interior para a capital do estado.

Anglônia tem aproximadamente quinze mil habitantes, distribuídos entre a área urbana e seus confins, pelos quatro cantos, dentro dos limites do município a que dá o nome. Jean Lucas e Sávio moram juntos na rua da catedral anglicana, de torres altas com detalhes neogóticos, próximos à rua da prefeitura – esta, construída nos moldes neoclássicos.

Na pequena cidade, toda de casas com telhados feitos conforme são feitos os telhados das casas da periferia da Inglaterra, as pessoas que demonstram alguma vida pública são todas graduadas; com o diploma retirado em alguma universidade da capital. O professor de história Jean Lucas e o engenheiro de estradas Sávio são exemplo dos altos índices de desenvolvimento humano.

Em Anglônia não há mendigos. Os pobres diabos que porventura chegam à cidade, egressos de alguma cidade vizinha, são depressa amealhados para os trabalhos sociais pelo pastor anglicano, Sr. Alvin Smith. Na igreja aprendem a ler, escrever, e algum ofício manual. Também têm alimentação gratuita e um teto para dormir pelo prazo máximo de dois meses.

Devido a seu invejável índice de desenvolvimento humano, Anglônia é conhecida como a pérola do sul. O desperdício de água e de energia elétrica é mínimo e a sustentabilidade do uso de recursos naturais é máximo: no município, para cada árvore que é cortada, outras cinco são plantadas. O resultado é uma cidade circundada pelo verde da floresta atlântica de altitude.

É nesta cidade que nasceram nossos heróis. Foi aí que nasceram e onde vivem juntos hoje, cada um beirando os trinta anos de idade, mas não mais que isso. A famosa batalha que deu a vitória aos ingleses sobre os franceses no século XIX dá o nome à rua onde moram Jean Lucas e Sávio. Nesta rua, acalenta-se a esperança da correspondência todos os dias, às nove da manhã.

O que tanto esperam os dois dos correios, que parece possível tornar este humilde servo de Deus escrever sobre Anglônia, e mais especificamente sobre seus habitantes? O que permite a mim escrever sobre o modo de ser dos habitantes da pequena cidade? Por que me proponho – assegurando meu anonimato – escrever sobre a história de Jean Lucas e Sávio?

Uma boa resposta a minha indagação eu mesmo posso formular. Todos os fins de semana, que surgem tão pacatos e sem acontecimento nenhum, debruço-me diante da tela de um computador para refletir sobre tudo o que se falou no comércio sobre a vida e a morte neste pedaço caído do céu. Sim, trabalho no comércio mas não vou me identificar. Apenas descrevo sobre o que sei.

Aquilo que não sei não me pertence, portanto não invento histórias sobre ninguém que conheça. Mas eis que nossa Anglônia não poderia ser perfeita, pois duvido que em algum lugar próximo haja tanta boca pequena. Não, não falo de invenções, mas de fidedignas verdades cuidadosamente observadas e vividas pelas pessoas que fazem chegar a mim o que sabem.

Duvido que o próprio pastor, Sr. Smith, saiba tanto do que ocorre em sua paróquia quanto eu sei. Para mim, convergem os pequenos trabalhadores, a maioria deles nativa – tal como eu – de cidades da vizinhança. Não conhecem os altos padrões éticos dos anglonienses, não reconhecem por este ou por aquele qualquer merecimento ou autoridade. Então, as fofocas vêm para mim.

Nesta tarde de sábado, mesmo com o calor do sol amenizado pelo grande anel de árvores a nosso redor, transpiro como transpira um porco enquanto bato nas teclas deste computador. E escrevo sobre os dois jovens cujas vidas conheço por fora e por dentro. Tenho por eles carinho e admiração, conhecendo como conheço o que é a vida. São jovens antes de mais nada corajosos.

Pois, esperam a chegada de uma carta. Sei disso pois o próprio carteiro me contou. O mais alvo dos dois, Sávio, teria ido à sede dos correios para reclamar que esperava carta de determinado lugar e queria saber da hipótese de extravio, uma vez que se passaram meses e nada. O carteiro contribuiu para montar toda a história, mas não foi o meu único informante.

Este dom de onisciência me foi dado pelos amigos que tenho, por toda a cidade, como já disse. Mas não me sinto culpado porque não dependo disso para viver e porque acredito estar fazendo um bom serviço relatar um dia, para todas as mentes, a beleza do ser humano. Não sucumbo ao maldizer, e prefiro ser atraído pela beleza que me traz a musa. É melhor voltar ao que interessa:

Faz mais ou menos dois anos, em uma manhã de domingo, Jean Lucas e Sávio foram de mãos dadas para o culto matinal da igreja matriz, a catedral de Anglônia. Causou espécie um momento aos presentes, que se acotovelaram e viraram as cabeças para trás, tentando observar o ocorrido. Mas minutos depois sorriram desajeitadamente, demonstrando tolerância.

Os dois eram conhecidos por todos da cidade: Jean Lucas dava aulas no Educandário Angloniense, enquanto Sávio saía pelas redondezas planejando e executando obras nas estradas da região. De seus projetos surgiam a ligação das áreas mais afastadas do município com a área urbana. Por serem conhecidos, sinto que os cidadãos de Anglônia esforçaram-se para tolerar.

E então veio o beijo. Neste instante o pastor conclamava os presentes a saldar uns aos outros com amor, e foi então que o amor de Jean Lucas e de Sávio teve a sua voz. O toque de nariz com nariz, lábio beijando lábio, a respiração contida pelo dançar das duas línguas, esse beijo foi o que, em qualquer lugar do mundo, traria condenação. Mas não entre a nata de Anglônia.

Sabia o casal o que fazia? Não tinha medo? Não teria sido fruto de um impulso impensado? Não. O belo jovem casal de Anglônia talvez quisesse testar o resultado de seu atrevimento, porque teve lugar durante um culto. Mas o certo era que não esperavam outra coisa senão aceitação. Conheciam bem seu povo, pois haviam sido criados nele.

Depois deste dia, a comunidade teria sido comunicada sobre o casal que residia em seu seio, na rua Waterloo, número 197. As crianças das aulas de Jean Lucas sabiam de tudo e o respeitavam. Os passantes que atravessavam de carro o caminho de Sávio não deixavam de cumprimenta-lo com um sorriso e a menção de tirar o chapéu em sua presença.

Viviam os dois no paraíso até quando inventaram de ter um bebê. Dada a especificidade do assunto, o bebê teria de vir da capital. Haveria uma clínica onde uma candidata a barriga de aluguel receberia a incumbência de gestar o bebê, seguindo toda uma série de protocolos que incluíam exames de sangue e a fecundação com o esperma de um doador.

O esperma dos dois colhidos para uma fecundação aleatória, ficaram a postos para quando uma correspondência lhes comunicaria o sucesso da fecundação da barriga de aluguel. Por este motivo, dormiam à noite “de olhos semiabertos”, cansados de tanto fitar a caixa de correios de casa. Esperavam sofregamente pela carta que anunciaria o resultado positivo da gravidez.

E este dia veio, então: Foi em uma manhã ensolarada em que Sávio não ia trabalhar. No dia de descanso de Sávio, o carteiro resolveu trazer para ele a tão esperada correspondência. Como de costume, todos os dias às nove horas, veio o carteiro ao portão do pequeno chalé da rua Waterloo 197, carregando um fardo pesado de papéis e de encomendas.

Sávio estava à espera do carteiro na mureta que cercava o jardim da casa. Não foi necessário deixar a carta na caixa de correios nem tocar a campainha e então Sávio deu pulos de felicidade, agradecendo ao carteiro com uma nota de cinquenta. Em seguida, entrou e acomodou a carta sobre a mesinha de centro da sala de TV. Ele e Jean Lucas a abririam juntos, mais tarde.

Através da faxineira da casa, o desfecho dessa história tornou-se possível compartilhar. Rosa é minha cliente já há muitos anos, e é chegada a um proseado sobre a vida de outros. Bom, o caso que fez muito feliz a Jean Lucas e Sávio é que a carta que receberam comunicava que finalmente uma tentativa de gravidez havia sido positiva.

O valente casal em meses descobriria o que é a paternidade e foi o que sucedeu na realidade. Um menino chamado João foi o prêmio por toda a espera dos dois. A mãe, como combinado, não procurou mais o filho; que foi dado para Jean Lucas e para Sávio. Assinaram papéis, registraram a criança, e a trouxeram da cidade para casa.

Assim que chegou, o pastor fez questão de mandar um recado para os dois: que levassem o bebê até a igreja para que recebessem uma benção divina. Por dois dias, receberam muitos telefonemas de felicitação, mas como fosse mais adequado, deixaram-nos em paz no terceiro dia. O prefeito da cidade enviou um enxoval, enquanto a diretora da escola lhes deu sapatinhos.

E assim chegamos ao dia de hoje, sendo testemunhas da vitória da vontade humana sobre as adversidades. É a história de um casal gay e é também uma história da bela Anglônia – lugar onde fez-se possível essa história. Não posso negar que em qualquer outro lugar essa história encontraria percalços dolorosos e um desfecho desfavorável para o casal de namorados.

E assim tudo, como a maria-fumaça em seu caminho ordeiro, voltou à mais completa paz. O mais novo bebê ganhou uma babá angloniense que tomava conta dele enquanto seus pais trabalhavam. Tiraram muitas fotos do pequeno em casa e uma foto foi publicada no periódico da cidade, sob a legenda: O Mais Jovem Cidadão de Anglônia Mostra a Que Veio. Simples assim.