Um caso de novela (janeiro de 2015)

Sempre desconfiei de que Marina me traía. Vigiava-lhe o caminhar, por vezes a seguia silenciosamente para saber com quem andava e o que fazia. E nosso casamento de quinze anos não veio a melhorar as coisas, muito pelo contrário. Em cada dia que passava, sentia mais ciúmes de Marina e fazia com que penasse mais diante de minhas acusações.

Nada do que digo agora justifica o que fiz e me arrependo muito de tudo o que fiz acontecer. O amor que sentimos por uma pessoa pode transformar a nossa própria pessoa em um monstro sem que possamos nos dar conta da transformação. Eu sentia que amava Marina, mas o leitor pode até sentir esta afirmação como contraditória. Como se pudesse ousar não amar Marina.

Mas basta que o leitor me acompanhe até o fim deste relato que poderá, quiçá, me compreender ainda que não simpatize comigo e com o desenrolar de minha estória. Apesar de tudo, eu considero minha estória uma estória de amor. É uma estória de amor que, de alguma maneira insuspeitada, escapou-me à mão e ficou perdida de mim eternamente.

Vamos do fim ao começo: Uma discussão costumeira envolvia os dois em mais uma discussão doméstica. Eu a acusava de flertar com outros na rua. Eu mesmo havia presenciado isto, no dia anterior, enquanto a seguia pelas calçadas do centro da cidade. Ela negava tudo e me chamava de louco. Dizia não aguentar mais o meu ego e o meu ciúme que matavam a tudo.

Marina tinha que falar alto para que eu lhe ouvisse, por isso gritava comigo. Eu já não falava, mas vociferava acusações que lançava sobre ela sem nenhum profundo pensar. Em sua defesa, dizia que em suas saídas frequentava aulas de piano e que seu professor era um ancião fora de qualquer suspeita. Mas eu não acreditava.

Para mim, naquele sábado derradeiro, Marina mentia novamente e já não conseguia reunir forças para rebater minhas acusações. Eu lhe culpava por me trair em todos os lugares por que passava, inclusive na aula de piano, onde eu acreditava que um professor jovem e charmoso a seduzia enquanto lhe ensinava algumas notas de música francesa.

Marina já não aguentava mais nossa discussão e quis fugir da sala onde gritávamos os dois sem surtir nenhum efeito de apaziguamento. Foi em um golpe de fuga que Marina para distanciar-se de mim tropeçou no tapete do centro da sala e bateu com a nuca na beirada da mesa onde ficava o telefone. Tentei de tudo para animá-la, mas foi morte instantânea.

Para meu entendimento, eu mesmo fui o responsável pela morte de Marina. Se não fossem o meu ego e meu ciúme ela estaria viva hoje. Disse isso antes para o leitor, e repito novamente: eu amava muito minha esposa Marina. Depois daquele sábado, nunca mais fui o mesmo pois, a parte maior de mim padeceu e morreu sem suportar a minha ira. Injustamente.

Do fim ao começo: Assim que nos conhecemos, uma década e meia antes do dia derradeiro, sabia que havia um amigo na estória. Inflei-me de fúria, puro ciúme descomedido, e isso causava graça em Marina. O amigo, ela ressaltava, era gay. Nas palavras de Marina, todo ciúme em relação ao amigo era puro nonsense. Dizia ela, rindo muito, “Deixa disso, João!”

Eu pedia de Marina uma prova de amor. Mas uma prova de amor tal que nenhum outro homem pudera anteriormente sonhar pedir a ela. Eu queria que gritasse, no meio da rua, por três vezes, bem alto, que me amava. E o que fez ela? Pois Marina gritou três vezes no meio da rua cheia de gente, debaixo do sol do meio dia, que me amava!

Atendendo aos meus pedidos, Marina se afastou do amigo gay. Não gostava dele. Depois de tudo de ruim que aconteceu no futuro foi que fiquei sabendo que o amigo de Marina realmente tentou dissuadi-la de se casar comigo. Para ele, desde quando fomos apresentados, eu de cara de poucos amigos, era louco e faria Marina sofrer. “Afaste-se de Antônio.” Disse ele a ela um dia.

Mas, como acontece nas novelas, paguei na época, logo no comecinho, a um marginal para que lhe desse uma surra e lhe aconselhasse a afastar-se de minha futura esposa. Dizem que o rapaz ficou em estado de miséria, tamanha a surra a que foi submetido. Logo depois, acredito que sem entender muito o porquê disso, afastou-se de Marina a pedido dela mesma.

Não acredito que Marina sequer desconfiasse que eu paguei pela surra de seu amigo. Chegou a comentar comigo um dia que ele havia apanhado tanto que teve de fazer uma cirurgia plástica para corrigir um afundamento de crânio no osso da face. Marina culpava a maldade do mundo. Seu amigo fora vítima de um ataque homofóbico e eu concordei com ela: mundo cão.

Não tivemos filhos e Marina nunca me culpara por isso. O fato é que sou estéril. Cogitamos adotar um menino, mas por minha culpa, que não gostava de nada e de ninguém entre eu e Marina, acabamos não adotando um filho. Em quinze anos, visitamos mais de quinze lares de adoção de crianças, mas saíamos sempre de lá de mãos abanando.

Marina, que sempre nutriu a esperança de adotar uma criança, estava por fim muito desgastada. Dava para dizer, a partir de seu semblante, que ela estava profundamente entristecida por não poder adotar um menino. Eu era o que dava a última palavra, e esta invariavelmente não. No entanto, Marina jamais me culpou por isto. A culpa era sempre dela mesma.

E foi mais ou menos nessas circunstâncias, e para escapar à tristeza, que resolver tomar aulas de piano. Todos os dias, por volta das duas horas da tarde, ia sozinha pelas ruas caminhando até o pequeno cômodo onde vivia o simpático velhinho que lhe ensinava piano. Ela tocava o interfone e subia de elevador o edifício.

Eu não soube ver o que acontecia. Sempre que, ao segui-la, eu a perdia de vista na entrada do edifício, minha pressão aumentava e ficava vermelho de raiva, transpirando muito. Amaldiçoava a ela e ao seu amante pianista. Não tinham vergonha na cara por me trair a dois quarteirões de casa e ainda por cima durante o dia!

O velório de Marina foi calmo. Estavam presentes seus pais e dois de seus três irmãos. Vi, de longe, um velho ancião que poderia ser o professor de piano de Marina. Não quis se aproximar, assistindo a tudo de longe. A família de Marina, polidamente e mesmo sem gostar de mim, me cumprimentou. O amigo gay de Marina não compareceu, provavelmente por minha causa.