E então éramos felizes (novembro de 2014)

Flávio e Gabriela encontraram-se pela primeira vez em um verão na praia. Tinham dezoito anos completos cada um, mas na cabeça eram dois adolescentes de muito menos idade do que aparentavam. Encontraram-se no carrinho de picolé, enquanto davam pulinhos descalços na areia quente para comprar um de limão.

Sorriram timidamente pela coincidência de pedirem o mesmo picolé, e não se desanimaram depois de saberem que picolé de limão não tinha mais. Ficaram com o picolé de uva cada um e aproveitaram a oportunidade para perguntarem os nomes. “Muito prazer”, disseram os dois dando pulinhos na areia e chupando com vontade o picolé de uva.

Caminharam juntos até onde o mar podiam lamber-lhes os pés, refrescando-se do calor intenso. Os dois apontaram, por educação, o lugar onde encontravam-se na areia suas famílias – que estavam de plantão na praia. Havia uma família de plantão, debaixo do guarda-sol, para cada um dos dois jovens. Mas as famílias, hipnotizados um pelo outro que estavam, isso não importava.

Alguém ouvia um radinho de pilha próximo, na areia da praia. Tocava na rádio um dos últimos sucessos do Legião Urbana, Eduardo e Mônica. Estavam no verão de 1987. Gabriela usava um biquíni muito azul, com uma fita de tecido pendendo da cintura. Flávio estava de sunga de praia, de laterais muito finas, e vermelha – com uma listra branca cobrindo toda a região da cintura.

“Você é daqui mesmo?” Perguntou Gabriela primeiro. Ao que respondeu Flávio, “Sim, sou da cidade, e você?” Ela respondeu-lhe, “Eu sou daqui mesmo, mas jurava que você era turista.” E gargalhou a menina. Flávio fazia cara de quem não compreendia o porquê do que lhe afirmava Gabriela, e ela explicou-lhe, “É por causa do seu jeito de segurar e chupar o picolé.” Riram.

Flávio fez cara de que compreendia o que Gabriela dizia. E chutando a água que banhava os pés molhou a menina na altura do umbigo. Dessa vez, fez cara de que não gostou da brincadeira. E Flávio arrependido lhe pediu desculpas, enquanto lhe envolvia o braço direito na altura do pescoço.

Gabriela desfez a cara amarrada e convidou o menino para nadar. Saltou na água ela primeiro, dando gritinhos porque a água estava muito fria. Não demorou muito para Flávio mergulhar na direção de Gabriela, que boiava no fundo admirando as nuvens do céu. O menino veio por baixo, e surpreendeu Gabriela puxando-a para o fundo.

Os dois riram e terminaram por brincar juntos de guerra de água. “Eu vou te afogar!” Dizia Flávio. “Eu te afogo primeiro!” Repetia Gabriela. E fugiam um do alcance do outro nadando na superfície ou mergulhando de um lugar para o outro na água salgada da praia. Não havia perigo de que se afogassem, uma vez que a praia estava muito cheia de gente e de guarda-vidas.

Foi Flávio que convidou Gabriela para acomodar-se com ele na areia da praia, ao abrigo do sol, debaixo de um guarda-sol que trouxera a família. Ela aceitou o convite e aproveitou para apresentar-se para a família. Antes de saírem da praia, uma hora depois, foi a vez de Gabriela apresentar Flávio para sua família. Formalidades completas, podiam relaxar.

Namoraram por longos vinte anos depois desse dia. Não existia mais Flávio sem Gabriela. Os dois formavam um casal que fazia questão de ser visto junto. E também não existia mais o casal sozinho, pois onde iam os dois eles levavam os gêmeos Felipe e Luís a tiracolo. Não deixaram nunca de ir ao seu lugarzinho na praia, apenas mudaram a composição da família dos dois.

Felipe tinha oito e Luís tinha seis anos de idade. Na areia da praia brincavam juntos, e faziam castelos de areia. Seus pais não alteraram sua rotina de verão ou nos finais de semana, quando não tinham que trabalhar. Nos dias comuns de semana os meninos iam à escola e seus pais iam trabalhar para pagar a vida da família, os dois.

Beirando os quarenta anos de idade, Flávio tinha entradas nos cabelos. Era o sinal indesejado de que aos sessenta ficaria careca como o pai. Gabriela, esta engordara uns quilos. Fazia regime a semana inteira e quando chegava o final de semana debruçava-se sobre uma lasanha gigantesca ou sobre um prato cheio de feijoada. O resultado era que não conseguia emagrecer.

Em um dia específico, em que o sol parecia escaldante, Gabriel e Flávio lembraram-se do pequeno rádio de pilhas que ouviram tocar pela primeira vez juntos a canção do Legião Urbana. Balbuciou Gabriela, e Flávio olhou para ela com alguma surpresa, “Eduardo e Mônica, ela era de leão e ele tinha dezesseis...” Disse-lhe Flávio, “Bons tempos em que éramos felizes...”

Flávio foi ao socorro de Luís, que chorava muito porque o irmão lhe atirara areia nos olhos. Fez como quem não gostou da brincadeira com o irmão, franzindo o cenho para Felipe, e erguendo o dedo prometeu-lhe um dia de castigo pela brincadeira de mau-gosto. Jogou água no rosto de Luís e acomodou-o debaixo do guarda-sol, em seu colo, sobre uma cadeira de praia os dois.

Retornou depois a atenção para Gabriela, “E então éramos felizes...” Sorrindo e apontando o dedo para Luís, Gabriela afirmou: “Nós éramos felizes, sim, mas não sabíamos o que era carregar no colo a felicidade que carregamos hoje.” Flávio completou: “Tudo mudou, desde então. Eu te amava sem poder medir o valor do amanhã.” E aí estão o Felipe e o Luís.

“E então éramos felizes.” Disse Gabriela aproximando o corpo da cadeira onde Flávio estava sentado com Luís dando um beijo terno no filho e acariciando de leve a cabeça do marido. Depois completou o que dizia, “Gosto que seja assim, hoje. É outro mundo, diferente daquela manhã em que tudo era apenas sol e mar.” E ele disse, “Hoje há a responsabilidade.”

Gabriela sorriu mas não deixou Flávio saber se concordava ou não com ele. Parecia pensar longe, divagar por veredas distantes. Foi então que Flávio cantarolou baixinho, para si mesmo, “Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração...? E quem irá dizer que não existe razão...?”

Gabriela foi despertada e confidenciou a Flávio: “Naquela época, dávamos pulinhos na areia para comprar um picolé. O que mudou desde então, para mim, é que agora trazemos para a praia os chinelos.” E sentenciou Flávio, “Naquela época, torrávamos os pés na areia escaldante. Hoje, são oito os pezinhos que têm de fugir da areia quente. Mas amo vocês.”