O homem que dormiu dez anos (setembro de 2014)

Olhou-se no espelho do banheiro e estremeceu. Como não se houvera apercebido do tamanho exagerado da barba? Trazia a barba gigantesca, extensa de tal modo que alcançava o umbigo. Mas, como não se houvera notado? Imaginou que certamente dormira por mais de um mês sem que se apercebesse disso.

Com as mãos em concha, atirou uma quantidade grande de água da torneira sobre o rosto, esfregando com os dedos os olhos incrédulos, pupilas dilatadas. Tinha muita sede e ainda bebeu água da torneira, antes de olhar-se novamente no espelho. Como pôde isso ter acontecido?

Saiu do banheiro em busca da folhinha de calendário da parede da cozinha: Dizia Janeiro de 2004. E lembrou-se de dezembro e das festas de fim de ano. Havia ido dormir no dia primeiro de janeiro, logo após o réveillon, e acordara ali meses depois... Não pôde suspirar aliviado ao ver a folhinha, porque não esclarecia sua data atual.

A barba estava muito grande, tão grande quanto não havia jamais visto em seu rosto. Não era obra de um mês, longe disso, era trabalho de mais de um mês de barba: Foi aí que teve a ideia de ligar a TV. Correu o apartamento até a sala, reparando a grossa camada de poeira que cobria o chão e tudo o mais. Tomou à mão o controle remoto.

Ligou o aparelho no canal principal: um desfile de escola de samba lhe assegurava que era carnaval. Assim, Aníbal sentiu que poderia ter dormido por aproximadamente dois meses. A folhinha o enganava – era de fato um dia de desfiles na Marquês de Sapucaí – um feriado de carnaval (do mês de fevereiro ou março).

Olhou pela janela da sala e deparou-se com um muro de concreto. Não estava lá havia um ou dois meses. Haviam construído um edifício bem ao lado do seu, tomando toda a vista privilegiada que tinha para a praia. Mas, como é isso que um edifício inteiro havia sido posto em pé em dois meses? Pensou que o pior teria acontecido...

Aníbal se conscientizava de que poderia ter dormido não meses; mas anos. Isso explicava a barba imensa e o arranha-céu que parecia para ele ter saltado do chão como que por encanto, de um dia para o outro. O fato de ser carnaval apontava para o mês de fevereiro, ou março, mas de que ano? Pensou no pior.

Lembrou-se do computador, haveria de checar ali, mas teve muito medo. O tempo que perdera era o que mais temia. O que teria sido feito de sua noiva, namorava já havia quatro anos? Quantos anos perdera, e de fato o que acontecera no tempo em que dormiu? E o trabalho, os amigos?

O rapaz pensou quantos anos de idade contava então. Quando foi dormir, contava trinta e quatro anos. Quantos anos teria hoje? Talvez trinta e cinco, ou trinta e seis anos... Então, o que foi feito do seu trabalho, do escritório de advocacia? Acaso, teria ficado inativo por um ou dois anos, assim como ele? O pior poderia ter acontecido...

O pior acontecera: No computador, era carnaval do ano de 2014. Havia dormido, portanto, por longos dez anos. Não importava mais saber como, mas importava saber o que teria sido feito de sua vida. O que restava: Onde estava Luana e onde estavam os sócios, colegas de trabalho, Sílvio e Jonatan?

Não importava saber o porquê de nunca lhe acordarem, o porquê de permitirem a ele dormir para o mundo durante dez anos de sua vida. Isso, de nada adiantaria explicar. O importante era saber o que lhe restara a partir daquele momento. Era saber o que ainda lhe dizia respeito e o que não existiria mais para ele.

Jonatan e Luana sempre se pegaram. Sempre trocaram olhares interessados. Não era difícil prever que em sua ausência os dois tenham se unido. Provavelmente teriam até se casado. Em dez anos, poderia assegurar que os dois teriam fabricado um par de rebentos, ambos com a fisionomia balofa do pai.

Jonatan, gordo, teria dois filhos balofos com Luana. E os dois com nomes estranhos, de seriado de televisão norte-americana, assim como o pai. Os filhos gordinhos chamar-se-iam Magnum e Maicon: Era o sonho de Jonatan tornado realidade. E a mãe orgulhosa sorria para os vizinhos, dizendo “são a cara do pai.”.

Aníbal teria dormido por dez anos... Muita coisa acontecera nesses dez anos: Jonatan casara-se com sua noiva, dando ao mundo um par de meninos roliços com nomes engraçados. E Sílvio, o inescrupuloso da firma, em sua ausência, teria assumido o controle dos negócios. Tudo muito fácil de imaginar.

Sílvio se destacava na firma. Não perdia um único caso. De fato, era alguém de quem Aníbal gostava muito. Não cessava de elogiá-lo. Porém, passados dez anos, e seu amigo nunca lhe procurara? Foi a ambição que o moveu nesse tempo todo. Melhor que Aníbal estivesse fora do páreo, assim de sócio minoritário ele passaria à chefia.

Sílvio assumira o controle do escritório de advocacia. Para tal, era preciso apenas que o sócio maior, acima dele (Aníbal), se afastasse das atividades do escritório. Por isso, não o procurou por tantos anos. Teria muito a ganhar tomando às suas mãos as rédeas do negócio.

Aníbal pensava: “Se telefonasse para o escritório na segunda-feira, e perguntasse pelo chefe, a secretária (seria uma desconhecida), passaria o telefone para o Sílvio imediatamente.” “E, se perguntasse pelo esposo de Luana, teria pronto do outro lado da linha a voz de Jonatan.”

“Traidores amaldiçoados.” “Amigos da onça.” Os dois únicos amigos em sua ausência lhe teriam roubado tudo o que tinha. “Mas, se Luana uniu-se a Jonatan, seria por culpa de sua própria consciência feminina.” “Seria falta de amor de Luana, nunca me amara, e a perfídia sempre rondara seus pensamentos mais inconfessáveis.” Regurgitou.

Aníbal puxou o fio do computador com raiva, desligando o aparelho. Depois, foi até a cozinha, e serviu-se de um copo d’água. O jogo de cadeiras de vime lembrava a presença de Luana naquele apartamento. Certa vez, passaram ele, Luana, Jonatan e Sílvio juntos uma tarde inteira, sentados naquelas cadeiras da cozinha.

Era uma tarde escura de um final de semana de julho, fazia um bocado de frio. Conversavam muito sobre o significado da amizade e contavam anedotas. Não ofendiam ninguém, não faziam mal a nenhuma pessoa, apenas extravasavam com boas gargalhadas na semana que havia terminado.

Luana dizia que tão logo se casasse com Aníbal ostentaria uma bela aliança de ouro dezoito quilates na mão esquerda – Aliança essa que fizera Aníbal prometer que compraria, para o festejo da união. Sílvio emendou que Luana era pródiga, que levaria Aníbal à falência, e riram todos juntos da brincadeira.

Esse encontro entre amigos havia acontecido no ano anterior ao grande sono de Aníbal, lembrava-se o pobre homem virando o copo d’água goela abaixo. Depois, levantou-se da cadeira e tornou a colocá-la no lugar. Apagou a lâmpada da cozinha e andou até a sala de estar, onde a televisão estava ainda ligada.

Muita cor e alegria no desfile das escolas de samba. Aníbal deixou-se encantar por um momento com aquilo. Refletiu sobre todos os outros desfiles de escolas de samba que perdera; Sobre tudo aquilo que não havia visto, ouvido, ou participado no período de dez anos. E percebeu que sua barba estava com a ponta grisalha.

Quando voltou ao mundo, voltou com quarenta e quatro anos de idade. Sem dúvida, uma idade a se considerar. Eram quarenta e quatro anos de idade que não havia conquistado, no dia-a-dia. Cuja cor acinzentada da barba não falava nada da experiência de vida não vivida. Apenas crescera, enquanto o corpo dormia.

Talvez Jonatan tenha levado Luana para o grande desfile, talvez os rebentos tenham ido com os pais. Luana dizia sonhar com um desfile de escolas de samba no Rio de Janeiro, e então Jonatan lhe teria atendido a esse sonho viajando juntos para o Rio. E talvez os dois tenham feito isso juntos nos anos anteriores, talvez mais de uma vez.

E Sílvio? Sílvio não teria feito melhor que Jonatan, a ambição era algo que não lhe faltava. Podia vê-lo trabalhando todos os dias do feriado enquanto ele imaginava a que distância dele encontrava-se Aníbal, em sono profundo. Naquele exato momento, estaria sentado a uma escrivaninha lendo pilhas de processos.

Quão profunda seria a sua perfídia, em comparação com a de Jonatan... Enquanto àquele importara roubar-lhe a noiva, a este interessava apossar-se do poder de Aníbal. Com Aníbal fora do caminho, cabia todo o poder de mando a ele, o segundo sócio na linha de sucessão do escritório.

Em dez anos, quantos presidentes da república se sucederam no comando do país? Todos à sua revelia! Quantas estatuetas do Oscar ganhou Tom Cruise, nesses dez anos? Seria ele ainda o galã queridinho do cinema norte-americano? Vivia ele, ainda? E quem ocupava a Casa Branca? Qual o presidente dos Estados Unidos?

Quantas telenovelas teriam se sucedido no horário nobre da televisão, no curso de dez anos? Quantos mitos televisivos surgiram, e quantos deles morreram? Quem tomava conta do mercadinho da esquina, aquele do coreano idoso de muitos rebentos, onde comprava leite todo dia? Certamente, um dos filhos mais velhos o sucedeu.

“Sílvio me confessara uma vez que nutria desejos de enveredar-se pela carreira política.” “Teria ele finalmente se candidatado em um pleito eleitoral?” “E teria, porventura, conseguido eleger-se?” “Sua ambição o levaria longe: um dia seria deputado, em outro quem sabe presidente da república.” “Ou assim sonhava ele”.

Luana e Jonatan teriam passado a lua de mel nas Ilhas Seicheles, Aníbal tinha certeza disto: Conhecer estas ilhas era um sonho antigo de Jonatan. O bobalhão repetia o nome das ilhas, como se acenando para um precioso conhecimento de mundo. “Um dia, voo até as Ilhas Seicheles”. Repetia, sempre que estava a sós comigo.

Havia algo de bom em se haver ausentado por dez anos? Talvez sim: Não pagara impostos enquanto dormira e nem por isso alguém o enviara para a cadeia. Foram dez anos sem pagar o imposto de renda, o que multiplicados os anos pela quantia média anual, daria para hospedar-se por um mês em um cinco estrelas nas Ilhas Seicheles.

O coreano de muitos rebentos que tocava o mercadinho da esquina já contava com mais de sessenta anos de idade. “Esse teria morrido de ataque cardíaco, e lhe haveria sucedido um dos filhos, que se viciara em drogas e acabara por jogar todo o negócio do pai na lata de lixo, desviando dinheiro para manter o vício.” Sentenciou.

“Como a vida é cruel.” “A gente se ausenta por um tempo e quando retorna roubaram-lhe o trabalho e a mulher.” “O homem que vendia o leite, aparentemente seu único amigo, teria falecido sem encontrar depois da morte alguém que verdadeiramente o representasse.” Divagou Aníbal sentado no sofá da sala, acariciando uma almofada.

O pequeno relógio de cima da estante da sala marcava duas horas e meia da manhã e o desfile na televisão prosseguia animado. Mas a profusão de cores e a alegria carnavalesca não encontravam eco na pessoa de Aníbal. Esse via melancolicamente os minutos passarem, pensando e sentenciando o mundo a que retornara.

“Não, não quero este mundo!” Disse em voz alta para que o ouvissem as paredes. “Melhor será se eu puder dormir novamente dez anos.” Reiterou, enquanto desligava o aparelho de televisão e apagava a luz da sala. De pijamas como estava, e de volta à cama, jogou para o lado a barba gigantesca e dormiu dez anos novamente.

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 12/10/2014
Reeditado em 13/07/2017
Código do texto: T4996812
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