_Sabia, sabiá? _O sabiá sabia. (junho de 2014)

Voo doméstico. Subi à bordo do avião exatamente ao meio dia. Quinze minutos depois havíamos decolado. Sentei-me exatamente na metade da aeronave, exatamente no meio de duas poltronas, na altura da asa direita. De onde estava, observava tudo o que acontecia no corredor – tanto para a frente quanto para o final da aeronave.

Com o avião já sobre as nuvens acenderam-se os sinais de desafivelar os cintos. Espremido entre uma senhora gorda e um sujeito mal-encarado de bigodes fartos, desafivelar o cinto causou-me um tanto de alívio. Sorri um pouco envergonhadamente para meus companheiros de viagem e dobrei o corpo para frente, espreguiçando-me.

Não tardou muito para avistar dois comissários de bordo brotando da dianteira do avião empurrando um carrinho de guloseimas. Avistei caixinhas de suco de laranja e caixinhas de refrigerantes. Vi também que serviam minúsculos cubos de requeijão acompanhados de pequeninas embalagens de biscoitos água e sal.

O aspecto de minha companheira à esquerda, sentada no corredor, não era nem um pouco bom: transpirava muito e a maquilagem do rosto estava um pouco borrada. Tudo devido ao fato de esforçar-se a caber naquela cadeira minúscula da aeronave. Era simplesmente tarefa impossível para ela.

Foi aí que tomou coragem para clicar no botão sobre sua cabeça para chamar algum funcionário de bordo. Como supus que ela soubesse que eu sabia o que se passava, fiz um sinal com a cabeça expressando aprovação. Recolhi o máximo que pude meu braço esquerdo, na tentativa de lhe dar mais espaço, e ela agradeceu.

Um comissário veio sem mais tardar, inclinando-se sobre dona Verônica (fiquei sabendo o nome de sua boca, quando apresentou-se para o comissário), e ficando encima da mulher gorda parecia muito mais intimidá-la do que expressar preocupação pelo desconforto terrível que passava. Ele deixou-nos para falar com outro atendente.

Dessa vez, vieram dois comissários, sendo que um abandonou o carrinho de guloseimas que empurrava para atender à solicitação do colega e achegar-se a dona Verônica. Um dos rapazes havia encontrado uma solução para o problema: havia uma poltrona atrás de nós com muito mais espaço e estava vazia, então...

Deram os dois as mãos a dona Verônica, e ela levantou-se como se desse uma volta no ar. Por todo o tempo ela os agradecia muito, até quando a conduziram ao assento vazio, que supostamente teria mais espaço para a senhora se acomodar. Todos conhecem este acento, mas por ser um pouco mais caro, geralmente ninguém ocupa.

Confesso que suspirei aliviado, permitindo que meu braço esquerdo caísse sobre o lado do assento esquerdo que dona Verônica incomodamente ocupava. Eu ainda ouvia, vindo imediatamente de trás de mim, as palavras de agradecimento da mulher gorda. “Muito agradecida.” “Não tenho palavras para agradecer”; repetiu várias vezes.

Ao meu lado direito permanecia o velho senhor de grandes bigodes, que acompanhava o tumulto dividindo sua atenção entre o que se passava na aeronave e o que podia avistar pela janelinha; ao que tudo indica havia apenas um mar de nuvens e o sol brilhando acima, tão forte que cegaria qualquer um que ousasse lhe encarar.

Houve um instante em que nossos olhos se encontraram, não com certa surpresa para ambos. Ele estendeu-me a mão e disse, “João Cândido, a seu dispor”. Eu retribuí o gesto de amizade me apresentando “Muito prazer, Jorge Nascimento”. Em nome das boas maneiras, sorri e apertei-lhe a mão.

Como não sou de muita conversa, então eu não me estendi e calei-me. Apenas apontei para a janelinha e perguntei se podia avistar terra. Ele me respondeu com um sorriso amplo – quase tão grande de uma extremidade do rosto à outra quanto o bigode – que de vez em quando avistava uma casa lá embaixo.

Dei por encerrada a nossa conversa, porque estava muito interessado no lanche que me haveriam de servir em breve. Mas, que demora! Passaram-se meia hora de voo e o carrinho só agora nos avizinhava; para nós que nos sentávamos no meio do avião, na altura da asa. Eu queria comer todos os cubinhos de requeijão que tivessem.

Podia jurar que, a essa altura dos acontecimentos, dona Verônica dormia o melhor de todos os sonhos, em seu grande assento. Meu vizinho da direita sorria e procurava oportunidade para engatar uma conversa. Eu simulava distração, enquanto prendia toda minha atenção no corredor da aeronave e no carrinho de comes e bebes.

Nada adiantou, pois logo, seu João Cândido interrompeu nosso silêncio: “_Sabia, sabiá? _O sabiá sabia.” Eu não parecia entender e ele repetiu: “_Sabia, sabiá? _ O sabiá sabia.” Eu não encontrei outro recurso senão rir. Ele assentiu com a cabeça e gargalhamos os dois. E então ele se apresentou para mim.

Seu José Cândido era um velho oficial de chancelaria, o que eu francamente lhe disse não saber o que era. Ele me explicou que trabalhava em uma embaixada no México e que estava de volta ao Brasil agora por conta das festas de fim de ano. Iria visitar a família. Ele não era casado, mas tinha uma mãe adoentada e duas irmãs.

Dando continuidade à nossa conversa, ele tentou explicar-me a diferença entre um diplomata e um oficial de chancelaria: “Oficial de Chancelaria é um funcionário que desenvolve formulação, implementação e execução dos atos de análise técnica e gestão administrativa necessários ao desenvolvimento da política externa brasileira".

E emendou: “os diplomatas são os cônsules e embaixadores, que dentro da carreira no Ministério das Relações Exteriores ocupam os postos de liderança, ou seja, os mais altos na hierarquia de uma embaixada. Caberia aos oficiais de chancelaria e aos assistentes de chancelaria dar suporte ao trabalho dos diplomatas.”

Eu começava a compreender as atribuições de um oficial de chancelaria. Percebendo isso, ele procurou concluir, acrescentando que “o oficial de chancelaria é como o comissário de bordo. Quem dá base ao funcionamento do avião é o comissário. Já os pilotos são como os diplomatas, pairando no alto de uma pirâmide hierárquica.”

Procurei demonstrar interesse: “Então, o senhor deve falar várias línguas. O que conheço do trabalho do comissário de bordo é que ele está pronto para falar línguas estrangeiras.” Ao que me devolveu ele, “É o que tentei fazê-lo ver. Na minha profissão, desde o começo, exige-se o conhecimento avançado de ao menos o inglês.”

Eu estava bem certo de que seu João Cândido tinha uma vida muito interessante vivendo no exterior. Haveria muitas estórias para contar, coisas muito excitantes. Eu, na contramão, como jornalista, não teria nada a altura para competir com o oficial de chancelaria. Por isso calei-me mordendo a língua por alguns minutos.

Ficamos em silêncio. Acho que desapontei meu companheiro de viagem, que estaria disposto a prolongar a conversa ouvindo um pouco de minha vida. Acho que esperava saber qual era a minha profissão, se eu conhecia o exterior, onde morava... coisa assim. Mas me mantive firme e não abri o bico, envergonhado com minha vida normal.

Saber o que eu não sabia: “_Sabia, sabiá?” Custou-me muito entender a abordagem engraçada do velho seu João Cândido “_O sabiá sabia.” Ele referia-se a tudo o que eu poderia deixar de saber por fugir de um contato. De fato, aprendi alguma coisa que eu não sabia com ele. As palavras-chave me fizeram também pensar em “sabedoria”.

O carrinho das guloseimas chegou até nós. Um dos comissários era o mesmo que ajudou dona Verônica a encontrar um assento mais razoável para sua condição. Sorriu e perguntou se aceitávamos alguma coisa. Tomei um copo de suco de laranja e devorei meu queijinho. Deixei as bolachas de água e sal por último.

Atrás de mim, pude ouvir dona Verônica tossindo muito. Provavelmente se engasgara com os biscoitos. Um comissário de bordo apressou-se para acudi-la. Ergui minha cabeça por cima do repouso da cabeça do assento para ver: O comissário dava tapinhas nas costas de dona Verônica e um pedaço de biscoito voou longe.

Meu companheiro bigodudo também acompanhou a cena, demonstrando solicitude e preocupação. Nós dois ajoelhados encima dos nossos assentos podíamos comentar sobre o ocorrido. Ele acreditava que o caso era sério, e que se devia alentar o préstimo de um doutor. Eu acreditava que tudo seria resolvido sem maior comoção.

Aproveitando-me do instante, em que discutíamos a gravidade do problema de dona Verônica, devolvi-lhe: “_Sabiá, sabia? _O sabiá sabia.” Não importava muito o que pensássemos, porque a tripulação já havia tomado o caso para si. Dando uma tapinha no ombro do velho seu João Cândido, lhe disse “mas que o sabiá sabia, sabia”.

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 13/08/2014
Reeditado em 13/08/2014
Código do texto: T4920950
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