Ensaio em um parágrafo sobre a chuva

Uma flor murcha, mórbida, que definha. Não é regada por água – os líquidos que penetram suas pétalas enrugadas limitam-se ao álcool e à cafeína. Um homem que – mesmo sem vida – sonha com a redenção. Ah, o desgraçado! Nascido já morto, fadado ao eterno martírio de sentir nas veias a impossibilidade de ser minimamente feliz, ou ser o que comumente os outros homens são... E anda só, mental e fisicamente só, a esbarrar, a tropeçar em seus pés, em seus sonhos, em seus infindos – e grotescos – fracassos. Ressurgem as reminiscências da infeliz puerilidade, já deveras remota e quase apagada, que fora isenta de carinho e afeto paterno – por motivos óbvios: a orfandade, o abandono; ressurgem as lembranças do seu único, primeiro, derradeiro e traiçoeiro amor – sucedido pela rejeição, a marcante rejeição de um espírito demasiado sensível às redes desordenadas da paixão; ressurge o calor dos olhos dela quando pousados sobre os seus; ressurgem os lisos fios dos cabelos entre os seus dedos agora atrofiados. Em suas costas pesam todas as horas de tortura que passara para livrar-se das memórias, e eis que ressurgem como numa torrente – e não é ousado dizer que de maneira ainda mais ardente. Está sóbrio: lembra, corrói-se, sofre. Seu âmago suja os papéis aos quais recorre quando as moedas lhe são escassas. Tudo aquilo que toca automaticamente é maculado. Sente-se – e é – o pior dos vermes. Contudo lembra-se, e o lembrar aflige-o de terrível forma, juntamente com a humilhação do seu estado atual. O álcool e a poesia são fracas saídas quando comparadas à sua preferida: a fuga até certo ponto desvairada na chuva. Ele então esquece e vaga, vaga, vaga sem rumo, sob as gotas que o livram por alguns minutos do mormaço do ciclo vital. A chuva é bondosa, sim, e o cobre com seu amoroso véu de incontestável virgem, que a poucos honra com as puras visões de suas delícias. Quiçá uma carícia aquática, uma dança que afaga – assim as gotas tocam seu rosto, balbuciando uma sutil canção. Ele sorri. Lembra – agora sem desgosto – dos leves dedos do seu amor. O pranto mistura-se com a chuva, os

gritos com os trovões, e tudo é um caos pacífico, bem aceito por ele. A água escorre momentaneamente todo o lodo de sua alma. Ah, o desgraçado!...

01/06/14