A LOUCA E A CRUZ (EC)

A conversa, na noite enluarada e fria, em torno da fogueira, era para passar o tempo.

Para puxar assunto, um do povo comentou qualquer coisa sobre a Louca que passava o dia defronte da velha Cruz da estrada que todos percorriam no vai-e-vem diário do pequeno vilarejo.

A Louca, entre risos e tristeza lacrimejante, falava coisas que ninguém entendia.

Muito se dizia a respeito da Cruz e da Louca.

HAICAI

Caminhava só

Paisagem brota sombria

Uma cruz na estrada

Durante o dia sua presença tornava a Cruz aterradora.

À noite, a Cruz parecia menos assustadora. A Louca parecia afastar-se, como desse uma trégua. Talvez fosse sonhar as loucuras do dia seguinte.

Criavam-se muitas lendas em torno da Louca.

Lendas... Ah! As lendas.

Alguns do povo riam das crendices. Entretanto, pelo sim, pelo não, evitavam o lado da estrada, quando divisavam a Louca em sua lida.

Com essas coisas não se brinca, recomentou um e persignaram-se quase todos.

Alguns do povo diziam que a Cruz era dela mesma e ela, ao anoitecer, escondia-se e a suas dores, refugiada em alguma gruta inacessível ou desconhecida.

Bobagem! Afirmava dona Virgínia, vetusta senhorinha, quase segura de si, em sua sapiência octogenária. Garantia que aquela Cruz existia desde os tempos de seus avós e a Louca apenas se apegara a ela. Ao ser indagada sobre quem seria a Louca, esquivava-se.

Sobre a Cruz, ouvira dizer uma homenagem de uma família a um filho assassinado em duelo de amantes da mesma mulher.

Motivo bastante para temerem fosse a Louca a mulher objeto do desejo dos duelantes. E seu verdadeiro amor, a vítima. Por isso passava todos os seus dias, anos a fio, chorando sua alma.

Seu Aparício contava uma história um pouco diferente.

Ouvira dizer que era a Cruz de um escravo. Apesar de bom trabalhador, fora torturado até a morte, suspeito de roubar algo de seu proprietário.

Quem colocara a Cruz fora a sinhazinha Sophia, filha do dono da fazenda e defensora da liberdade. Expulsa de casa encontraram-na morta ao lado da Cruz. Sua mãe, com a perda da jovem filha, enlouqueceu e desde então vaga por ali na esperança da volta. Para dar mais veracidade a sua versão, garante, de cruzar os dedos, que em noites mais enluaradas um vulto negro, avermelhado de sangue, também pode ser visto vagueando por ali. Nunca vira, mas que viram isso era certeza.

TROVA

Um vento bruxuleante

Brilhante facho de luz

Na noite de frio cortante

Iluminava uma cruz

Epifânio narrava o que escutara também de seus avós. A Louca pedira um milagre junto à Cruz que fora colocada ali em homenagem a uma pessoa digna de ser santa. Não se sabia mais, ao certo, se um menino ou um padre. Vivera por ali havia mais de séculos.

O milagre pedido? Também não se sabia. Alguns do povo diziam que nunca ocorreu. Parecia não ser pequeno o pedido. Desses de dificultar o ofício do Santo. Insistente, a Louca permanecia em sua fé que aconteceria um dia. Outros do povo, ao oposto, garantiam que ele obtivera o milagre e vinha diariamente agradecer.

Um acidente! Interveio dona Cândida...

E prosseguiu... Um casal vinha de charrete pela estradinha. Felizes, traziam seu filho recém-nascido. O cavalo assustou-se com uma cobra e a charrete virou. O homem e o bebê morreram. A mulher colocara duas Cruzes para não se esquecer deles. Uma grande para o homem e uma pequena para a criança. A pequena sumiu com o tempo. Por isso, D. Cândida tinha certeza, de ouvir dizer, que a mulher conversava com a Cruz grande e ajoelhava-se à procura da Cruz pequena desaparecida.

A Cruz foi posta lá em virtude de uma desavença de dinheiro afirmou, com a segurança do indiscutível, o sério Sr. Áureo. Contou que havia uma herança a ser dividida. Inclusive ouro. Nunca chegaram a um acordo. Depois de uma discussão, um irmão matou o outro naquele lugar. A mãe chorava todos os dias a frente da Cruz... Até morrer. A Louca é seu espírito que vem até hoje. Todos os dias se lamentar.

Desfiaram mais algumas narrativas sobre a origem da Cruz.

Parecidas.

Todas críveis ou não.

Os relatos venceram a monotonia das horas. Cansados e sem uma conclusão sobre qual seria a verdade da Cruz, foram se levantando, deram-se boa noite e cada qual se recolheu a sua casa.

Em cada cabeça uma diferente versão de uma Cruz cravada na estrada.

Talvez, simplesmente, por acaso ou para servir de referência do caminho em tempo antigo...

A Louca?

Uma sugestão coletiva naquele sertão de um calor de assar o crânio?

De certo mesmo, a Cruz e a Louca permaneciam insistentemente na rotina daquelas pessoas, que crendo ou não, passavam a história de geração em geração.

A Cruz nunca sai de lá... No mesmo lugar da estrada. Não se mexe um milímetro, à espera diária da Louca se rendendo a ela.

Fazem-se companhia e amenizam suas solidões.

HAICAI

Cruzes pela estrada?

Trajetória tortuosa?

Redenção final!

Este texto faz parte do Exercício Criativo - Uma Cruz à beira da estrada

Saiba mais, conheça os outros textos:

http://encantodasletras.50webs.com/umaCruznabeiradaestrada.htm

Pedro Galuchi
Enviado por Pedro Galuchi em 11/08/2014
Reeditado em 25/10/2017
Código do texto: T4918014
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