"Insight"

Depois de uma noite em que pouco dormiu, resolveu subir. Pela primeira vez, o fato de ter perdido o sono não a tinha irritado: abriu muito grandes os olhos, virando-os para dentro. Naquela madrugada, tomou a iniciativa. Quando chegou em cima, começou a tatear. Surpresa: o telhado não era de vidro, como pensava. Uma luz no horizonte permitiu-lhe ver: o seu era semelhante aos demais telhados dos arredores. Sorriu. Seu sorriso foi-se abrindo em riso franco. E, lá onde estava, suspensa, teve vontade de gargalhar.

Há quanto tempo se tinha deixado convencer? E tinha tomado as devidas precauções? Fazia tanto tempo que aquela idéia devia confundir-se com seu próprio início como pessoa. Quando era pequena, recolhia-se para escapar das brincadeiras - às vezes não muito delicadas - dos irmãos maiores. Ouriçava-se num canto, até que as coisas acalmassem. E seus pais eram severos, ah, eram. Agia o melhor que podia para não lhes chamar a atenção. Até que encontrou um companheiro para trocar apoios. Era algo muito incipiente, uns olhares que se espichavam à mesa de um bar, palavras ricas em dubiedade, pouco mais. Um dia, a mão do rapaz escorregou por sua face, foi explorando-a devagarinho, tocando cada milímetro. Sentia seu rosto pegar fogo; tinha vontade de escapar àquele assédio, mas, ao mesmo tempo, não tinha. E fez-se eterno aquele primeiro afago do qual saiu como se houvesse sido batizada. Dias depois, seu amigo faltou a um encontro. Foram-se sucedendo as faltas, sem que compreendesse bem por quê. Ao ser questionado, ele respondeu que estava por formar-se, iria embora, era melhor não aprofundar... Queria guardar uma imagem inteira de um relacionamento tão bonito. Com raiva, acusou-o de falso, de medroso, do que lhe veio à mente. Ao que ele falou: melhor calar, quando se tem telhado de vidro.

Fez uma pirueta lá em cima, estava aliviada por ter conseguido. O sol surgindo em cada nicho, banho de luz. Ela diante de si mesma, descobrindo aquela realidade que sempre lhe fora pesada. Telhado de vidro, por quê? Aquela idéia a levara a ser bastante dura. Quem iria protegê-la, a não ser ela própria? Lá embaixo, passavam as pessoas. Não a viam, passavam apressadas. Cada vez mais ocupadas...

Mauro também era ocupado. Podia dizer que tinham vivido "cada um na sua." Não reagiu quando manifestou que iria embora. Afinal, era como se fosse algo já previsto. Foi abrir-lhe os fechos e cadeados da porta da rua. Que se fosse, depois de anos de um relacionamento íntimo que não fora tão íntimo assim. Olhou a filha que dormia no sofá, enrolada em um cobertor. Teria de ser pai e mãe. Compôs o rosto, compenetrou-se. E foi levando como podia, pois Laura era uma companhia adorável.

Abriu os braços, recebendo a luz. Cerimônia em que voltava a defrontar-se consigo mesma, aceitando-se. Suavizar o contorno dos olhos, afrouxar os lábios... Podia, de certa maneira, sentir Deus. Ou percebê-lo dentro de si. Lentamente, foi virando-se. Focou o pátio, atrás da casa. Viu Laura, o peito confrangeu-se. "Mãe, preciso ir." Pedido pungente, balançando no ar. "Mãe, eu volto."

Oscilou lá em cima, a perigo. Conseguiu equilibrar-se. Começou a descer devagarinho, apoiando-se nas próprias mãos. Um novo batismo acontecera.

Béti Mecking
Enviado por Béti Mecking em 17/05/2007
Código do texto: T490425
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