O PAVÃO

Em 2001 Lara estava com vinte e dois anos e em breve ia se formar em Jornalismo. Como gostava muito de ler e escrever, ela volta e meia aparecia em noite de autógrafos para ver seus escritores favoritos, e também porque poderia conhecer alguém do ramo editorial que se dispusesse a ler o seu trabalho. Lara andava muito entusiasmada porque na sexta-feira iria à Livraria Tradição para ver o grande Lucas Matoso. Seu forte eram os romances de aventura, mas também se destacava na poesia, sem falar do seu profundo conhecimento de cinema. Por três anos ele fizera a crítica de filmes estrangeiros para um jornal paulista de grande circulação. Lara estava há bastante tempo esperando a chance de conhecê-lo. Além de ser um homem bonito, ele tinha o dom da palavra e ela simplesmente adorava a maneira como ele narrava uma história.

Antes de sair de casa, Lara escolheu a dedo o que vestir. Era bem verdade que não queria passar despercebida, porém não queria dar uma de “Maria” da literatura, isto é, algo como a Maria Chuteira do mundo das letras.

Quando Lara chegou à livraria, já havia uma longa fila para pegar o autógrafo de Lucas. O jeito era ter paciência e deixar o tempo passar até chegar a sua vez. A princípio, Lara pôs-se a ler as orelhas do livro porque estava curiosa. Na verdade, por falta de tempo não lera nada a respeito da obra, portanto, precisava saber algo sobre o enredo, afinal, se ela pudesse, faria algum comentário espirituoso só para trocar algumas palavras com o mestre. No fundo, ela não queria dar nenhum fora, ao contrário, ela queria causar boa impressão.

Após meia hora ela não pôde deixar de notar alguns artistas da televisão indo e vindo. Uns poucos ficavam lá no final, no entanto, a maioria se achava tão especial que furava a fila.

Depois de quase uma hora, estava chegando finalmente a vez de Lara. Como ela era uma moça muito bonita, de cabelos castanhos claros e lisos, alta e magra, sua presença era sempre notada, salvo raras exceções. E não foi diferente com Lucas. Quando ele ainda atendia o senhor logo à frente de Lara, seus olhos encontraram os dela e algo aconteceu. Foi um momento mágico, contudo, o encanto se quebrou quando o tal homem fez uma pergunta e Lucas teve de sair do seu transe para dar a resposta. Logo depois que o idoso foi embora com seu livro autografado, Lucas olhou para Lara completamente embevecido. Ele estava prestes a perguntar o nome dela quando foi agarrado pelas costas. Era uma destas estrelinhas de televisão que estava no auge por conta de algum reality show ou de alguma novelinha, sabe-se lá. Ela acabara de chegar, porém não tinha tempo a perder. O assessor de imprensa da moça pediu que ela tirasse uma foto abraçada com o escritor e nesse meio tempo, um repórter de um programa de fofocas começou a fazer algumas perguntas capciosas para Lucas, que parecia não entender bem o que estava se passando. Todavia Lara entendeu tudo rapidinho. A moça devia ter plantado alguma informação sobre um possível affair entre ela e o escritor. De repente, a assistente de Lucas apareceu para salvá-lo e disse que como havia ainda uma fila muito grande, ele teria que se apressar. Foi então que, com enorme pesar, Lucas colocou uma simples dedicatória para Lara, mas não pôde fazer mais nada. A jovem ficou ali por perto ainda por algum tempo. Ele bem que procurava observar aquela moça encantadora, mas estava muito difícil acompanhar o que as pessoas lhe diziam. O jeito foi esquecê-la temporariamente antes que fizesse ou dissesse alguma bobagem.

Lara ficou mais uns vinte minutos na livraria, mas como o seu ídolo estava muito ocupado, ela acabou desistindo. Entretanto, ao voltar para casa, ligou o computador e começou a pesquisar tudo que pudesse a respeito de Lucas - tanto do seu passado quanto dos seus planos futuros.

Durante a investigação, Lara descobriu quase todos os passos dele e os dois começaram a se esbarrar em teatros, exposições assim como em outros lugares também. Lucas estava cada vez mais empolgado com aquela linda menina que o seguia. E ela parecia hipnotizada pelo charme e pela criatividade do seu herói.

Até que uma tarde apareceu a tão sonhada oportunidade que Lucas vinha esperando. Devido à forte chuva que caía desde a madrugada, o número de pessoas que compareceu à palestra, na Casa da Leitura, foi bem pequeno, e assim o evento acabou mais cedo do que estava programado. Foi então que Lucas, vendo que Lara estava presente, a chamou para tomar um capuccino num café ali perto. Os dois ficaram de papo até o momento em que a garçonete apresentou a conta porque já estava na hora de fechar o estabelecimento. A conversa estava tão interessante que era realmente uma pena interrompê-la, e foi assim que ele convidou Lara para ir ao seu apartamento. Numa situação normal, ela jamais iria sozinha para a casa de um homem sem que o conhecesse bem. No entanto, ela não sabia o porquê, mas confiava cegamente nele. Eles ficaram conversando por bastante tempo, saboreando um delicioso vinho que ele havia recebido do seu editor português. Lucas até que improvisou um lanche para Lara, porém não era bem este tipo de fome que ela estava morrendo de vontade de matar. Quando ele foi colocar mais vinho na taça dela, ela o puxou e o beijou de tal maneira que ele não teve mais dúvida sobre o que ela queria. Dali para a cama foi um pulo. Os dois se entregaram, por horas, a explorar cada palmo do corpo do outro. Quando já ia quase dar uma da manhã, Lara disse que precisava ir embora. Bem que Lucas tentou convencê-la a ficar, porém não houve jeito, e ele acabou levando-a em casa.

Com certeza aquele foi o dia mais maravilhoso que Lara havia vivido até então. Estava completamente apaixonada pelo seu herói das letras, como o apelidou. Um homem dezoito anos mais velho, mas criativo, perspicaz e muito, muito sedutor. Ele botava no chinelo qualquer daqueles rapazes com quem Lara se envolvera na sua curta vida amorosa. Lucas era experiente e em pouco tempo conhecia seus desejos como ninguém.

A paixão dos dois foi tão avassaladora que depois de uns dois meses, eles já estavam morando sob o mesmo teto. Lara havia conseguido uma oportunidade numa revista de viagens. Seu salário não era grande coisa, contudo, tinha um emprego enquanto que muitos de seus colegas ainda estavam fazendo entrevistas. Poucas semanas depois de se mudar, Lara chegou à casa por volta das dezenove e trinta, e quando foi acender a luz, nada aconteceu. Ela pensou que a lâmpada do hall estivesse queimada, porém ao tentar ligar o abajur do lado do sofá, não obteve sucesso. A casa estava totalmente às escuras, e o pior é que não havia uma lanterna sequer ou até mesmo um toco de vela. Lara acabou telefonando para Lucas e eles dormiram na casa de um amigo.

No dia seguinte, os dois voltaram ao apartamento e souberam, através do porteiro, que a luz havia sido cortada. Lara passou a manhã de sábado procurando as contas da casa. Lucas era muito desorganizado. Não havia uma pasta, gaveta ou envelope onde ele enfiasse as contas. Tudo estava espalhado aleatoriamente pelos diversos cômodos. Como ele não sabia onde as contas estavam, ele perdia o prazo. Lara se perguntava como era possível que um homem tão inteligente quanto ele não colocasse os pagamentos em débito automático no banco. Era bem mais simples e prático. Passados alguns dias, ela encontrou a vizinha de porta e começaram a conversar por conta do mau tempo. As duas passaram a se falar com mais frequência e foi aí que Lara ficou sabendo que aquela não era a primeira vez que a luz havia sido cortada. O mesmo já tinha acontecido com o gás, e ele também já tinha sido multado pelo condomínio por ter atrasado bastante o pagamento.

Lara até tentou conversar com Lucas sobre o assunto, mas ela ficava meio sem graça já que eles tinham pouco tempo de convivência, e ele, por sua vez, não parecia estar nem um pouco interessado em mudar seus hábitos.

Durante os oito meses seguintes tudo correu bem. Parecia que Lucas tinha finalmente criado um pouco de juízo, e com a organização de Lara, eles fizeram pastas para as taxas que tinham que ser pagas, e as que já estavam quitadas.

Foi no mês de setembro que uma bomba caiu na vida de Lara. Devido a uma disfunção hormonal, o ginecologista dela havia sugerido que em vez de usar a pílula, ela deveria colocar um DIU, só que aparentemente seu organismo não se adaptara e ela descobriu que estava grávida. Lara ficou atônita sem saber o que fazer. Sempre sonhara em ser mãe, mas achava que era muito jovem para tal, além disso, seu relacionamento com Lucas era recente. Por incrível que pareça ele não fez nenhuma cena ou brigou com ela. O problema começou quando ela passou a enjoar terrivelmente. Ela tinha que cozinhar porque ele sequer sabia fazer um ovo. Foi um sufoco esta fase. Depois, já lá pelos oito meses, o bebê não parava quieto na sua barriga. Parecia que a criança estava fazendo uma apresentação de salto ornamental. Era um mergulho atrás do outro. Aí o médico achou melhor que Lara ficasse de repouso no final da gravidez, e aconselhou que eles suspendessem as relações sexuais para evitar que o bebê pudesse nascer antes da hora.

Tudo transcorreu bem durante o parto, entretanto, outros dissabores apareceram um pouco mais adiante. Ao levar o neném para uma visita de rotina ao pediatra, Lara passou por uma situação constrangedora. O bebê não pôde ser examinado porque o plano de saúde não autorizou a consulta por falta de pagamento. Dali a dois meses, Lara não conseguiu dar uma das vacinas ao bebê porque não havia dinheiro ou pelo menos foi isso o que Lucas alegou. Lara se sentia mal com a situação, porém Lucas parecia não se importar com nada disso. Na verdade, com o tempo, Lara aprendeu que a única coisa que realmente significava muito na vida de Lucas era a literatura. Ele podia ficar sem comer, sem gás ou sem luz, porque isto não o tirava do sério. No entanto, ele ficava possesso quando ela o confrontava com a realidade. Ele insinuava que ela estava chata, mandona, só falando em dinheiro, e em contas. Ao mesmo tempo ele se queixava, dizendo sentir saudades da mulher pela qual se apaixonara. Por sua vez, Lara agora estava mais agressiva, mas também pudera. Eles tinham um filho, mas o pai parecia ignorar o bebê.

Lara foi levando aquela situação, pois ainda tinha esperanças de que Lucas voltasse a ser o homem que ela tanto admirara. Entretanto, a verdade é que nos últimos meses, os dois estavam sempre se aborrecendo por causa de dinheiro, e ela não conseguia convencê-lo a abrir uma conta conjunta a fim de que ela cuidasse das finanças da família e o deixasse em paz.

Todos que conheciam Lara viam o quanto ela estava infeliz. Ela alternava momentos de profundo abatimento com uma raiva contida. Sua única alegria era o filho, porém também vivia preocupada com o futuro dele visto que o pai vivia no mundo da lua e estava cada vez mais ausente de casa. Lucas passou a viajar para promover sua obra. O sucesso do seu último livro havia sido tão grande que o seu editor português o convidou a participar de um evento literário em Lisboa onde faria parte de um painel junto com outros escritores. De onde saiu o dinheiro para a viagem, Lara nunca soube, mas o fato é que Lucas foi para Portugal sem deixar nenhum tostão para que ela se virasse na sua ausência.

Os pais de Lara desconheciam a real situação da filha porque ela nunca deixou transparecer o que se passava na sua nova família. No entanto, durante a viagem de Lucas, Lara foi visitar sua mãe. Passados alguns momentos, a mãe percebeu que o neto estava com uma pontinha de febre. Ao perguntar o que o neném tomava para baixar a temperatura, Lara desabou num choro de dar dó. A mãe viu que a menina precisava desabafar e deixou que suas lágrimas rolassem sem interferir. Nesse meio tempo, ela telefonou para um sobrinho que era médico para saber o que dar para o bebê, e após ministrar o medicamento ao netinho, ela voltou-se para Lara e disse:

_ Lara, agora que você já chorou um bocado, me diga o que aconteceu e acontece na sua casa. Não me esconda nada porque sou sua mãe e só quero ajudar.

Foi o quanto bastou para Lara colocar para fora tudo que estivera represado desde que as coisas começaram a dar errado com Lucas. Quando Lara acabou de contar suas mazelas, a mãe providenciou o almoço para a filha enquanto esta tomava um bom banho. Depois de comer, Lara estava tão exausta que foi dormir em seu antigo quarto. Quando Jaime, o pai de Lara, chegou à noite, sua mulher contou tudo o que se passara durante o dia. O pai bufava de raiva. Ele não entendia como Lucas podia ser tão irresponsável, ainda mais porque ele não era nenhum garotão. Pelo contrário, era um homem feito. Jaime nunca esteve feliz com a escolha da filha, mas não podia impedir que ela seguisse seu rumo. Contudo, ele agora ia tomar conta dela e do neném a não ser que ela ainda insistisse em ficar com aquele traste.

Tão logo Lucas voltou de Portugal, Lara foi ter com ele para conversar. Ela mal conseguiu falar porque ele estava mais empenhado em contar as suas aventuras na capital lisboeta do que em ouvir o que ela tinha a dizer. No entanto, a sua ida até lá não foi em vão, pois Lara teve a certeza do que lhe cabia fazer quando notou que Lucas não fez nenhuma pergunta sobre o filho: onde estava, com quem, se estava passando bem,...nada, absolutamente nada. Ela ficou perplexa porque pensou que apesar de Lucas ser um sonhador, ela ainda acreditava que ele pudesse ter sentido saudades do filho. No entanto, a viagem pareceu ter apagado a criança da sua memória. Aquilo era muito triste, porém como seus pais estavam dispostos a ajudá-la, ela encontraria forças para criar seu menino. Lucas que ficasse com seus admiradores, aduladores, com seus livros e seus personagens mirabolantes, pois tudo isso não passava de uma grande ilusão. Finalmente ela conseguia enxergar quem ele era - não o herói que ela aprendera a amar, mas um pavão. Quanto à ela, já havia escolhido para si a missão de criar uma verdadeira história de amor e cumplicidade entre mãe e filho. Ela agora estava pronta.

Beth Rangel
Enviado por Beth Rangel em 31/05/2014
Reeditado em 13/08/2014
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