AS AVENTURAS DE BELINHA

Era uma vez uma menina chamada Isabel, ou melhor, Belinha. Nasceu tão pequenina e magrinha que ninguém poderia imaginar o mulherão que iria se transformar um dia. É bem verdade que o pediatra havia explicado aos pais que criança se desenvolve fora da barriga da mãe, mas era difícil crer no prognóstico do médico.

Logo no primeiro mês, Belinha aumentou cinco centímetros quando a maioria das crianças só cresce dois. Aos poucos ela foi se desenvolvendo e ganhando peso. No entanto, ela custou um pouco a falar porque seus pais não usavam a linguagem infantilizada que a maioria dos adultos adota ao conversar com crianças. Em vez de falar “Está na hora de mimi”, eles usavam ”dormir”, e no lugar de “au au”, diziam “cachorro”. Convenhamos, é bem mais fácil ensinar a linguagem “tatibitate”, porém seus pais, sendo professores, acreditavam no que estavam fazendo. Ela levou tempo até dizer “cacá” para designar cão, entretanto, depois de alguns meses, Belinha já falava com desenvoltura. Foi assim que ela foi aprendendo a se comunicar, e hoje ela o faz muito bem, tanto oralmente quanto por meio da escrita.

Desde cedo Belinha mostrou que tinha personalidade e que não tinha vindo a este mundo a passeio. Uma vez antes de deitar, ela saiu do quarto para escovar os dentes, e sua avó paterna, que estava visitando a família, resolveu arrumar a cama com os brinquedos favoritos da garota. A nora apressou-se a convencer a sogra a não tentar, visto que a senhora desconhecia o lugar de cada um dos bonecos, porém ela não se deu por vencida:

_ Nanda, isso é coisa da sua cabeça. Não tem posição certa nem nada. A menina não vai nem notar se algum deles estiver fora de ordem.

Diante dessa sentença, só restou à nora ficar calada, mas ela conhecia a filha que tinha. Tão logo Belinha entrou no quarto, foi logo dizendo:

_ Tá tudo errado. Primeiro é o Buba de Caretinha, depois é a Buba de Batom e hoje quem dorme abraçadinha comigo é a Lolinha.

Coitada da avó! Ficou passada com a organização da netinha, e a partir desse dia passou a respeitar a ordem da pequena.

Belinha sempre foi muito dócil e obediente, mas aos cinco anos resolveu colocar as manguinhas de fora. Numa única semana, testou a paciência de todos. Uma tarde, Nanda subia as escadas da escola para apanhar a filha na hora da saída quando ouviu a professora dando uma bronca daquelas numa criança. A princípio estranhou porque a moça era um doce, e mal se ouvia sua voz. Para estar falando naquele tom, algo de realmente sério deveria ter acontecido. Nanda não sabia exatamente o porquê, mas resolveu seguir sua intuição e diminuiu o passo até parar no meio da escada. Foi então que ouviu:

_ Maria Isabel, como você pôde fazer isso! Você tem noção de que sua brincadeirinha estragou a experiência da turma inteira? Há uma semana estamos observando esse cravo branco mudar de cor, através da adição de anilina azul à água, e você coloca quase que todo um frasco de detergente líquido na flor! Você arruinou toda a pesquisa. Teremos que voltar a fazer tudo de novo!

Nesse meio tempo, Nanda havia subido os últimos degraus e se postara silenciosamente na porta da sala. Como a professora estava de costas, não vira a mãe chegar e a filha, por sua vez, também não. No entanto, quando a menina viu sua mãe parada ali, congelou. A cara dela dizia tudo. Foi então que a professora reparou nas feições da aluna e virou-se. A moça ficou um tanto sem graça, mas Nanda foi logo se apressando em tranquilizá-la. A bronca tinha sido dada com razão. Belinha ouviu poucas e boas dos pais.

Nesta mesma semana, ao voltar da escola na quarta-feira, a menina tratou de sair correndo pela calçada. No começo a mãe pensou que ela ia parar logo ali adiante como estava acostumada a fazer, mas naquele dia a garota desembestou. Embora a mãe corresse atrás dela e gritasse para parar, Belinha só fazia correr mais e mais. Para desespero de Nanda, a garota se aproximava de uma das esquinas mais movimentadas de Botafogo, no Rio de Janeiro. No entanto, na hora H, a menina estacou justamente quando o sinal abriu para os carros. Ela ficou se equilibrando no meio fio enquanto os veículos passavam zunindo por ela. Ao se aproximar, a mãe teve vontade de sacudi-la, de abraçá-la, de lhe dar um cascudo ou uma palmada - tudo ao mesmo tempo. Belinha nunca tinha feito isso antes. Ela sempre gostara de correr, mas sempre parava ou até voltava ao encontro da mãe. Entretanto, neste dia, parecia que ela estava encapetada. Quanto mais a mãe chamava, mais a diaba corria. Pelo visto, o anjo da guarda de Belinha teve que entrar em ação antes que algo de mais grave acontecesse.

Dali a dois dias, Nanda estava tão atrasada que ela e Belinha pegaram um táxi rumo à casa da avó materna. Quando chegaram, o taxista parou do outro lado da rua. A menina, num átimo, abriu a porta do carro e ficou na calçada. A mãe disse para que ela aguardasse ali enquanto pegava o troco. De repente, ouviu-se uma freada. A destrambelhada da menina resolveu atravessar a rua por conta própria. Para piorar as coisas, ela o fez pela frente do táxi de modo que a motorista do carro só a viu quando o veículo estava bem perto. A sorte é que a mulher estava atenta e pisou no freio rapidamente. Além disso, como o carro vinha em baixa velocidade, ele parou a tempo senão seria uma desgraça. Além do susto, Nanda ainda ouviu poucas e boas da motorista, e ela sem poder dizer nada. Ela ficou possessa com a filha. Que diabo havia dado nessa garota para resolver em uma semana fazer toda a sorte de maluquices de uma só vez? Ela nunca dera trabalho e sempre ouvia com atenção o que os pais diziam. Parecia que sua menina havia sido clonada e aquela era a sósia, e não a sua filha.

Na semana seguinte, veio na agenda um convite para um passeio ao zoológico na sexta-feira. Era tudo que Belinha desejava! Ela tinha verdadeira paixão por animais e seu programa preferido era visitar o zoo. A mãe achou que aquela oportunidade serviria para ensinar uma lição a sua filha. Nanda leu o bilhete em voz alta e disse:

_ Você não vai. Se você não respeita a professora e não obedece a sua mãe, não está em condição de fazer excursão nenhuma com a escola.

_ Mas, mãe, eu prometo que vou obedecer. Vou ficar boazinha. Vou andar do lado da professora. Deixa eu ir. Todo mundo vai.

_ Em primeiro lugar, eu não tenho nada com todo mundo. Em segundo lugar, passeio é prêmio e você não está merecendo nada. Em terceiro lugar, você que pensasse antes de fazer as bobagens que fez na semana passada. A resposta é não, e ponto final! Você vai ter que provar que posso confiar em você novamente. Até lá, nada de passeios sem a minha supervisão.

A direção da escola tentou interceder pela menina. Até mesmo o pai procurou convencer a mãe a mudar de ideia, mas ela foi irredutível. Embora fosse difícil para Nanda, ela achava que não era hora de ser flexível e parece que estava certa. Belinha nunca mais estragou qualquer outra experiência do colégio. Também nunca mais correu feito uma louca pela calçada ou atravessou a rua por conta própria, a não ser, é claro, quando já estava mais velha.

Belinha só voltou realmente a aprontar dois anos mais tarde. Ela havia completado sete anos em novembro e dali a pouco tempo seria hora de dizer adeus a sua primeira escola. Em dezembro ela iria prestar concurso para o Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro ( CAp da UFRJ ), prestigiado colégio público federal. Sua mãe a havia preparado para o “vestibulinho” que envolvia duas etapas, sendo a primeira a de matemática. Havia mais de quinhentas crianças para apenas cinquenta vagas, e quem não passasse no primeiro estágio, nem fazia o segundo. Belinha fez o teste de matemática, e passou. Os pais agora estavam mais confiantes já que a filha havia conseguido superar o maior obstáculo. Todavia, na véspera da prova de português, Belinha fez mais uma de suas travessuras. Ao beijar a filha na hora da saída, Nanda notou que a blusa do uniforme estava úmida.

_ Isabel, por que sua blusa está assim?

_ Sabe o que é? Está tanto calor que quando acabou a aula de natação, eu coloquei a blusa na água, torci bem e vesti. Estou bem fresquinha.

A mãe desesperada deu um catiripapo na cabeça da menina.

_ Mas que ideia de girico, Bela! Você pode ficar resfriada, filha.

E não deu outra. Embora a mãe tenha mandado a menina tomar um banho morno quando chegaram em casa, e tenha lhe dado uma roupa seca, a bobagem já tinha sido feita. À noite, Bela já estava febril e apesar de ter tomado um antitérmico e vitamina C, foi fazer o teste, na manhã seguinte, com uma ponta de febre. Quando Belinha acabou a prova, estava tão abatida e cansada que os pais desanimaram. Ninguém falou nada, mas os dois pensaram que um ano de esforço concentrado havia sido jogado no lixo, ou melhor, na água da piscina.

No dia em que saía o resultado do concurso, a família reunida foi ver a relação dos aprovados. Como os pais estavam meio descrentes, começaram a procurar pelo nome da menina no final da lista. Havia mais de 200 crianças nesta segunda fase e era angustiante ver folha por folha. Passado longos minutos, tanto o pai quanto a mãe foram ficando um tanto esperançosos já que o nome da filhota não havia aparecido ainda.

”Meu Deus, mas que tortura!” pensava a mãe em silêncio. Estavam chegando finalmente na parte em que apareceriam os cinquenta felizardos. Era agora ou nunca, e em quadragésimo oitavo lugar aparecia o nome de Belinha. Foi com um misto de alívio e irritação que a mãe abraçou sua filha. Ela sabia que Isabel não iria tirar os primeiros lugares, mas ela poderia ter colocado tudo a perder por causa de uma bobagem, sem falar também da angústia que todos tiveram que passar até saber que ela havia sido aprovada.

Quando Belinha já estava na quarta série do CAp, houve uma greve que se estendeu por quase três meses. Em vez dos professores se reunirem com os pais para conversarem e explicarem o que estava acontecendo, não. Eles simplesmente não tinham tempo para isso. Então começaram a aparecer vários boatos. Entre eles, o mais terrível dizia que as crianças iriam perder o ano letivo se ficassem sem aula por mais de noventa dias. Como a direção do colégio não se pronunciava, alguns pais resolveram tirar seus filhos da escola antes que fosse tarde demais. Nanda ficou bastante apreensiva. Como educadora, ela podia entender que uma criança não passasse de ano porque não havia estudado, mas ela não se conformava com a ideia de que sua filha tivesse a sua vida prejudicada por conta de greve de professores. Nanda foi à luta, e procurou uma escola particular próximo à casa de sua mãe para que Belinha começasse a andar sozinha. Ao levar o histórico da filha para ser avaliado pela diretora, ouviu o seguinte discurso:

_ Mãe, com as notas que sua filha tem, e sendo ela aluna do Colégio de Aplicação, eu não a trocaria de escola. Tenha calma, mãe. Tudo há de se resolver, mas é lógico que se você quiser matriculá-la, estaremos de braços abertos para acolhê-la.

Aquelas palavras ficaram reverberando nos ouvidos de Nanda. À noite, ela contou ao marido a conversa com a diretora. Foi então que, de repente, Belinha interrompeu os pais e fez um pedido.

_ Eu troco de escola, mas vocês me deixam voltar, uma vez mais, ao colégio para me despedir? Quero dizer adeus ao parquinho, às paredes da minha sala, ao pátio...

À medida que a menina falava, rolavam lágrimas nos rostos dos pais e da filha. Era sofrimento demais para uma menina. A tristeza dela era tão grande que era de cortar o coração, mas apesar de tudo, Belinha parecia estar conformada com seu destino. No entanto, no dia seguinte, os pais foram convocados pela direção do CAp para uma reunião. Na ocasião foi explicado que a universidade tinha autonomia suficiente para fazer seu próprio calendário, isto é, o boato de que as crianças iriam perder o ano letivo não tinha o menor fundamento. Alívio total para todos – pais e filhos. Ao mesmo tempo Nanda ficou indignada. Por que a direção levou tanto tempo para explicar isso aos pais? Se essa questão tivesse sido abordada desde o início, teria poupado tanto sofrimento não só para Belinha como para outras crianças também.

Entretanto, foi uma benção Belinha não ter tido que mudar de escola. Não só ela teve um ensino da melhor qualidade como também teve a oportunidade de conhecer e conviver com pessoas de todas as classes sociais. Grande parte dos melhores amigos de Belinha vieram do CAp e é muito bonito ver o quanto eles são unidos.

O tempo passou e Belinha cresceu. Hoje ela é jornalista e está casada com Carlos Eduardo, mais conhecido por Cadu. Os dois se encontraram num intercâmbio em Londres. O casal está grávido de uma menininha, e a mãe fica imaginando se Valentina será uma criança quieta e obediente ou uma capetinha? Para esta pergunta ainda não há resposta, mas o que importa é que Valentina venha com saúde. Se ela fizer uma ou outra travessura, tudo bem, afinal, qual é a criança que não faz diabruras de vez em quando? Que venha a querida Valentina!

Beth Rangel
Enviado por Beth Rangel em 13/04/2014
Reeditado em 14/04/2014
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