Madaleno (abril de 2014)

Esta estória se passou há quase cinquenta anos. No entanto, as cores fortes, vívidas àquele tempo – e que ainda esses dias acorrem à minha memória – fazem com que se pareçam tão vivas quanto a minha sombra cheia de buracos – repleta de lacunas – quando refletida no espelho do quarto de vestir-se: Tudo se mescla em um tom colorido de negro e laranja.

Difícil também dizer o impacto de minhas palavras para alguém que não tenha vivido os anos de repressão militar das décadas de mil novecentos e sessenta, setenta e oitenta. Mais difícil ainda, provavelmente, será fazer alguém não familiarizado com a família nordestina e seus hábitos, preconceitos e costumes, entender o meu relato e minha dor.

Tenho hoje a idade que teria Madaleno, caso estivesse vivo. Conto com sessenta e oito anos de idade – mas, cansada que estou com a passagem do tempo e as doenças que começam a aparecer para lembrar de que é chegada a velhice – alguém poderia acreditar que conto com uma idade ainda mais avançada. Em geral, não me envergonho com esses assuntos de idade.

Eu e Madaleno nos conhecemos desde a mais tenra idade. Nós nascemos no mesmo ano, em mil novecentos e quarenta e seis, na cidade de Umbuzeiro Grande, Alagoas. Nossos pais nos puseram a brincar juntos desde quando éramos bebês e, assim, nós nos criamos a correr e a organizar mil brincadeiras, juntos, ao redor de nossas casas (éramos vizinhos), e por toda rua.

Quando chegamos à adolescência (tínhamos onze anos), em uma tarde de forte vento sul, que arrancara parte do telhado da igreja, Madaleno veio até mim com um pedaço de metal de uma latinha de refrigerante e, segurando seriamente o objeto, entregou-me e me pediu em noivado: Algo que então, para minha vergonhosa inocência de criança, não pude entender.

A proposta de Madaleno fez com que me sentisse muito envergonhada. Eu compreendia que havia algo de solene no gesto do menino, mas não imaginava que, ali, havia a formalização de um compromisso, que o menino honraria sob juramento. Em minha ignorância, olhei para baixo e sorri amarelo para Madaleno. Logo, percebeu meu embaraço e caçoou de mim.

Disse-me Madaleno, “Ora, será que me deves algo para ficar tão ruborizada a um gesto de amizade pura?” Ao que repliquei, “Amizade? É para isso que veio aqui entregar a pecinha?” E Madaleno respondeu, “É amizade sim o que lhe proponho, e prometo honrá-la com o passar dos anos. Por isso o gesto e o mimo que lhe dou”. Tive que desabafar: “Pois, não lhe entendo.”

Madaleno desabou em uma gargalhada. Ele continuava caçoando de mim e aquilo me deixava nervosa. Rindo, o menino de onze anos me disse “Não se avexe, Cecília, pois este não é nem ouro nem prata – é lata. Mas saiba que estou lhe oferecendo o maior voto de amizade que existe: Primeiro noivamos, que é para a gente casar um dia.” Eu permanecia ruborizada.

Os anos se sucederam uns aos outros até o momento em que, no ano em que faríamos quinze anos, os adultos passaram a não nos enxergar mais com bons olhos – correndo descalços pelas ruas da cidade – dois bons moleques que éramos. Era só ver-nos correr, de pés no chão, e balançavam a cabeça em desaprovação. Foi assim que descobrimos que não tínhamos modos.

De repente, olhamos para nossos pés e mãos e passamos a reparar o barro nas unhas, a sujeira nos braços e pernas, e o cascão nas solas dos pés. Mamãe me chamou a um canto, assim como o fez a tia de Madaleno, Gilda. Queriam conversar conversa séria conosco, separadamente. À parte a sujeira no corpo, que já notara, não fazia ideia do que mais poderia me dizer mamãe.

Entrando em casa, mamãe pediu-me que, por favor, me sentasse. Trouxe um copo grande de suco de cajá e pôs sobre a mesa logo à nossa frente. Empurrou uma cadeira de sofá para o lado, de modo que pudesse sentar-se nela exatamente em minha frente, do outro lado da mesinha de centro da sala de visitas. Foi aí que começou a falar.

Disse minha mãe que eu já ia ficando mocinha e que havia assuntos de que tínhamos que tratar. Um deles, estapafúrdio para mim e que me deixou muito nervosa, era o assunto da irremediável menarca. Manhã me ensinou que, meninas da minha idade, ou até mais novas que eu, colocavam sangue para fora uma vez por mês. Fiquei chocada e quis saber o porquê.

Disse minha mãe, “Quando o sangue vem toda vez, a cada vinte e poucos dias, é que é bom. Quando ele não vem, quer dizer que a moça já virou mulher, e vai ter nenê. Mas, para isso minha filha, é preciso que a mulher seja mulher casada; se não for, vira mulher falada por toda a cidade.” Eu fiquei de olhos fixos na janela, e pensei no que diriam em sua casa a Madaleno.

Perguntei à mamãe se Madaleno também teria de passar por isso, como eu, ao que me respondeu – meio cheia de dedos – que não. Ela me advertiu que eu e Madaleno já éramos crescidos e que devíamos parar com nossas brincadeiras. Frisou que jamais Madaleno me visse pelada porque, com esse simples gesto meu, eu engravidaria de um nenê.

No outro dia encontrei-me com Madaleno e senti que havia algo de novo no ar. Acho que Madaleno também sentiu o mesmo. Minha mãe e tia Gilda deviam ter agido como de combinado, as duas. Queriam de alguma forma afastar-nos: Duas crianças que, aos poucos, começávamos a deixar de ser.

Brincamos uma vez novamente juntos, para assegurar a nós mesmos de que nada mudara. Mas já não olhávamos como antes para a sujeira do corpo: Com toda a indiferença habitual das crianças quando o assunto é limpeza. Havia também entre nós alguns códigos da puberdade, códigos dos adultos, que se impunham de fora para dentro em nossas vidas.

Concluímos nós dois, ao findar de novembro, o último ano letivo da escola de ensino fundamental de Umbuzeiro; e fui com mamãe fazer compras na cidade vizinha, em Aguaceiro. Compramos vestidos de muitos babados e muita costura – algo a que estava completamente desacostumada. Por toda vida usei as mesmas saias puídas, sem muito prumo, para brincar.

Minha mãe disse que não ficava bem para uma menina que caminhava a passos largos para se tornar uma moça não ter um guarda-roupas repleto de vestidos como aqueles. Compramos vestidos brancos, amarelados, azuis-claros e cor-de-rosa. Também compramos sapatos que teimavam em machucar meus dedos – mas que eram absolutamente necessários.

Na mesma semana, durante a missa, encontrei-me com Madaleno, seu pai e mãe, e sua tia Gilda. Assim como eu, estava com toda a indumentária que prometia trazer o cintilar da puberdade civilizada. Ele usava até mesmo uma pequena boina, toda costurada à mão, com linha de crochê cinza escura. Pude perceber naquela hora o teor da conversa com tia Gilda.

Os adultos queriam dizer que crescêssemos, que era chegada a hora de encontrarmos o rumo na vida, que era feio corrermos imundos de um lado para o outro, que as más línguas já se ocupavam em maldizer nossos destinos. Uma vez terminada a escola fundamental, no grupo, faríamos fora da cidade o ensino médio ou, como se dizia, fazer o clássico ou o científico.

De longe, na igreja, vi que Madaleno me acenou com um botão de seu colete de lã, erguendo o botão para mim. Com grande alegria, eu vi que Madaleno não se houvera esquecido do nosso pequeno noivado dos onze anos de idade. Ele não se esquecera de que um dia haveria de honrar o antigo noivado com o casamento – talvez até ali, naquela igreja, um dia.

Mamãe cismou em matricular-me em uma escola de freiras em Aguaceiro. O ensino religioso me faria muito bem, faria escola de normalista para lecionar para crianças, além de preparar-me para o matrimônio. Eu não queria ir, por isso andava toda emburrada pela casa, andando do sofá da sala para a cama todo o dia, sem proferir palavra para papai ou mamãe.

Mamãe ficou preocupada, mas percebeu que era marra minha e deixou. Eu gostava de crianças e me agradava a possibilidade de lecionar no grupo de Umbuzeiro Grande, mas me incomodava não saber de Madaleno o que o destino reservara para ele. Também Madaleno teria que mudar de cidade, para estudar, e eu estava curiosa para saber para onde iria.

Ninguém poderia avaliar o quanto me doía a perda de Madaleno. Éramos crianças com laços profundos, do tipo que perduram por uma vida inteira. E quanto ao nosso noivado então, que dizer disso? Ninguém, além de nós, jamais saberia. Tia Gilda (eu dizia, ‘a bruxa’), foi ela a responsável por mandar Madaleno para estudar na cidade grande, no Rio de Janeiro.

Fiquei sabendo do futuro paradeiro de Madaleno durante o almoço, através de minha mãe, muito en passant, como quem comenta que os frutos da árvore dos fundos já estão bons para a colheita. Naquele dia lembro que não consegui terminar a refeição. Minha mãe havia sido má por me dar a notícia daquela maneira tão fria, tão desumana. Para ela, que eu crescesse!

Digo hoje com convicção: Tia Gilda foi a responsável por orientar os pais de Madaleno acerca da mudança de ares de Madaleno – em direção a praias tão distantes. Por muito tempo, eu a odiei por isso. Em uma noite, no mesmo dia em que fiquei sabendo da partida de Madaleno para o Rio, ele veio até a janela de meu quarto munido de um pequeno objeto dourado.

Sabia o que era e, com pesar no coração por causa de sua partida, tentei devolver o presente. Afinal, guardava a relíquia original de lata em uma caixinha em cima da penteadeira – dela, eu jamais esqueceria. Mas Madaleno insistiu que tomasse o objeto, um anel de ouro, como confirmação dos nossos votos de noivado. Também deixou um endereço no Rio de Janeiro.

Madaleno queria que nunca esquecesse a promessa que fizemos um dia – da mesma forma que pedia que não deixasse de escrever para ele. Contou-me que partiria em duas semanas para o endereço que me dava no Rio de Janeiro, onde iria morar na casa de uma tia chamada Irene, mas que escreveria sempre. Um dia – promessa feita – ficaríamos os dois juntos.

Madaleno cortou o dedo polegar com um estilete que tirou do bolso da calça e depois cortou o meu polegar, dizendo “Cecília, isto é para sempre.” Quase desabei da janela no jardim, sobre um canteiro de rosas de minha mãe. Não podia ver sangue. Aquilo era romântico demais para o universo repleto de bonecas de pano de uma adolescente de quinze anos de idade.

Nós nos vimos novamente pela cidade em uma ou duas ocasiões, mas não nos falamos. Estávamos cercados de pessoas que não entenderiam as razões de nossos sentimentos, então era melhor guardá-los para as horas da noite em que Madaleno surgisse em minha janela. Encontramo-nos lá na janela por mais duas vezes, e em ambas nos despedimos com lágrimas.

O ano letivo começou e fui encaminhada por minha mãe para o trem que me levaria até a estação de Aguaceiro. De lá, guiada por uma noviça, segui para o internato das freiras. Chegando à escola, outra freira – a madre superiora, pelo seu tom de voz severo – guiou-me pela fileira de pequenas camas do dormitório até a minha cama, rente a uma janela gradeada.

Aqui de novo o grande hiato de minha estória. Depois que nos separamos trocamos cartas, como combinado, ao menos uma vez a cada mês – afinal, nunca ninguém nos havia proibido de nos corresponder, e por isso fazíamos uso frequente de missivas apaixonadas. Como nossas correspondências não agradariam nunca tia Gilda, por isso, mantivemos toda discrição.

O meu hiato, este que trago como lacunas, buracos em minha sombra no espelho do quarto de se vestir, começou em torno de cinco anos depois de nos haver despedido na janela de casa. Eu já havia retornado do internato, depois de terminados os três anos do clássico. Já em casa, depois de dois anos, ainda me correspondia com Madaleno, até que tudo silenciou.

Eu escrevia para o endereço de sempre, mas passado um ano não recebia resposta. Esquecera-se de mim. Enchi-me de coragem e procurei a família de Madaleno para saber notícias, mas não sabiam de seu paradeiro. Sua tia Irene, em cuja casa morava no Rio de Janeiro, não o via havia muitos meses. Sua mãe, chorando, disse-me que perdia as esperanças.

Madaleno não era de sumir sem avisar onde estava, o que chamou atenção de todos. A tia do Rio de Janeiro foi a primeira a avisar, por telefone, à família. Passara uma semana que não o via, telefonou para os pais do meu querido amor. Por conta de uma estranheza que existia entre mim e tia Gilda não se dera o trabalho de me telefonar e avisar-me do que ocorria.

Em nenhum momento cogitaram que eu poderia saber de seu paradeiro. Mágoas antigas, feridas que não cicatrizavam, havia feito com que minha família e a família vizinha (de amigos de longa data), se distanciassem. Afastaram a mim de Madaleno, o que terminou por afastar a todos: Desde quando fiz quinze anos deixamos de nos cumprimentar na rua. Uma bobagem.

Vivíamos no ano de 1967, em um regime militar. Algumas pessoas falavam nos becos e nos cantos da igreja sobre o que ocorria no país. Havia torturados e havia pessoas que haviam sido exiladas. Da mesma maneira, supunha-se que também muitas pessoas engajadas em milícias eram perseguidas e mortas. Madaleno estaria engajado em uma milícia, no Rio de Janeiro?

Nossas famílias, unidas na possibilidade de uma tragédia, pareciam emanar uma fumaça escura e pesada que cobria tudo de negro onde tocavam. Ao menos, essa é a minha maneira de referir-me ao luto que tomou conta de nossas vidas. Juntei as cartas que recebera no correr dos anos e compartilhei tudo com a família de Madaleno. Queríamos descobrir o porquê.

Eis o momento de meu hiato profundo, eu já crescida e trabalhando como professora no grupo. Minha tristeza, tudo à minha volta abalou, mas não deixei de trabalhar. De fato, passei a trabalhar em dobro, pois adoro crianças: Sempre que chego perto de um pequerrucho (é isso até hoje), dá-me a vontade de ter um filho só meu. Nestes instantes, imagino Madaleno pai.

Desde quando retornei à cidade jamais encontrei a paz por lá. Cada rua, cada transeunte, a pracinha da igreja... Tudo me fazia lembrar Madaleno e, para que não me vissem como uma louca perambulando sem rumo pelas ruas, tratava de empinar bastante meu nariz. Se alguém me cumprimentava, eu acenava com a cabeça, sem deixar nenhuma margem para conversa.

Não tardou muito e, passados quase um ano e meio do desaparecimento de Madaleno no Rio de Janeiro, veio visitar-nos a tia com quem morava Madaleno, tia Irene. Eu a conheci depois de um convite. Minha família e a família de Madaleno estavam novamente de bem. Telefonaram no mesmo dia em que Irene chegou e fui até lá conversar e tomar um café com broa de milho.

Como disse antes, toda esta estória – a estória do desaparecimento de Madaleno – se passou há quase cinquenta anos atrás. Durante aproximadamente vinte anos de minha existência vivi com a presença de Madaleno – de perto, como quando crescemos juntos, ou de longe, através de suas cartas. Depois disso, um silêncio permeou cada centímetro das janelas da casa.

Por diversas vezes, que não foram poucas, eu me peguei perdida a observar através do vidro da janela à noite, com a secreta esperança de que viria Madaleno acenar para mim com o botão de seu casaco de lã inglesa. Uma vez ou outra pude jurar que chamava por mim: Imediatamente, eu disparava para abrir a porta da frente para Madaleno.

Tinha dele uma fotografia em que contava já com uma barba – mas uma barba por fazer. Não tinha na foto mais do que dezoito anos de idade. Foi justamente dessa época que me enviou no internato. Escrevera no verso, “Para minha afortunada Cecília, ontem hoje e sempre”. Na carta, que vinha junto, dizia que não voltaria a Umbuzeiro até que se formasse em Direito.

Lembro-me de que naquele ano já me preparava para sair do internato, formada como normalista. Lembro-me também de que me senti decepcionada pelo fato de que passariam anos (anos em que Madaleno poderia esquecer-se de mim), até que pudéssemos nos ver novamente e conversar a sós.

Casei-me no ano em que completei meu vigésimo quinto aniversário. Foi quando conheci meu marido – e tive muita sorte ao conhecê-lo. O desaparecimento não esclarecido de Madaleno sempre foi um fardo muito pesado para mim, e meu marido fez de tudo para me dar outra vida, diferente daquela em que vivia, sempre à espera de um milagre próximo de acontecer.

Depois que Madaleno parou com seus telefonemas para a família e suas cartas comigo, fizemos de tudo para encontrá-lo. Fomos até a capital Maceió atrás de políticos que poderiam ter influência no Rio de Janeiro, mas nossa busca através da política alagoana foi quase em vão. Muitos sorrisos, diversos cafezinhos, algumas promessas – mas não conseguimos nada.

Um político local pôs em palavras aquilo que os outros não ousavam dizer, e o disse em sigilo, “Nunca diga que fui eu a dizer-lhe, pois vou negar. Mas nós sabemos que os ventos fortes da política de Brasília vêm levando muitas vidas para as valas da morte, em lugares inimagináveis. Se seu filho ou sobrinho está entre os subversivos, como acredito, não o encontrarão jamais.”

Nesse dia lembro-me de que chorei muito. Sentia o mais puro desamparo. Para evitar constrangimentos à família de Madaleno, segurava o choro em sua frente, mas me aliviava chorando de porta trancada no banheiro. Naquele momento, eu tinha vinte e um anos de vida, como também Madaleno, vendo-me forçada a aceitar a possível morte do meu amor.

Casei-me quatro anos depois, mas nunca tive filhos. No fundo, acreditava que alguém poderia um dia bater na porta e levar meu filho embora. Eu convivera com Madaleno e, talvez, uma mente doentia pudesse acreditar que tivera cria dele. Poderia acreditar que eu tinha um filho de subversivo e por isso o levaria para longe de mim. Optei por não ter filhos com meu marido.

Quanto a Madaleno, se toda a História fosse outra, nunca hesitaria em ter filhos com ele. Isso era, por certo, uma realidade que a mim muito agradaria. Mas não quis o destino de Madaleno que formássemos um ninho de amor repleto de rebentos cor de trigo; cor da pele trigueira do meu marido que nunca foi. Cor da pele de Madaleno.

Eu não era politizada ao ponto de me considerar na resistência ao estado autoritário, mas acompanhava cada reunião atrás do muro da igreja ou no salão de jogos do clube, onde se falava sobre os desaparecidos e o que isso representava para toda nossa nação. A pergunta, que pairava no ar, era: “Até quando?” “Qual o paradeiro dos desaparecidos?”.

A desgraça não se faz, ela vem pronta: Eis que um pulôver de lã inglesa foi encontrado nas dependências do DOPS (centro de detenção), no Rio de Janeiro. Chegamos até essa pista através do político alagoano que compartilhou conosco sua influência dentro do regime. Precisavam de alguém lá para reconhecer a vestimenta e tia Gilda foi a escolhida.

Tia Gilda foi com tia Irene ao DOPS. Eu não quis ir. Assim que viram o pulôver caíram no choro. A roupa era de Madaleno, sim. Pedindo silêncio, o político alagoano foi conversar com os soldados. Como resposta, nos registros dera entrada um certo Madaleno. A roupa pertencia a ele, que foi libertado dois dias depois de dar entrada nas dependências, sem dizer aonde ia.

Sabemos hoje que a estória é uma mentira. De fato, como nos advertira o político alagoano, a entrada no DOPS era o mesmo que dar entrada nas dependências da morte. Pouquíssimos foram os detidos que ali estiveram que sobreviveram para contar a estória. Para nós, o achado do pulôver de lã era o início do sepultamento de Madaleno – o que duraria muitos anos.

Como se envolveu em um grupo de milícias? Madaleno sempre fora um rapaz politizado – nunca alienado com o que acontecia em seu país. Não é difícil imaginar que, da universidade de Direito, deu um salto em direção à resistência armada. Isso teria acontecido sem que jamais nos comunicasse suas andanças, seu estado, ou suas ações – para proteger-nos, com certeza.

Eu compreendo melhor hoje, aos meus sessenta e oito anos de idade – e viúva há onze anos de meu marido Rui – o que foi aquilo que nos atingiu como um soco na boca do estômago. Foi quando Madaleno não mais telefonava ou se correspondia conosco. De sua tia Irene, não havia muito que esperar: Era a primeira de todas as resignadas de nosso grupo.

Tia Irene acreditava que quem brinca com fogo termina queimado. Falava em voz alta que,” graças a Deus, não trouxe a desgraça para dentro de sua casa”. Para ela, Madaleno foi contra os poderosos e, por isso, era natural que tivesse que pagar com a vida. É desnecessário dizer que minha antipatia foi instantânea... Achar que seres humanos deveriam viver como os ratos!

Houve também uma pista falsa, à mesma época, que nos levou ao Hospital Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro. Confesso que quando ouvi a conversa de que poderia estar lá eu me enchi de esperanças: Havia um Madaleno no hospital, internado pelo pessoal da ditadura, havia já alguns anos. Fomos todos para lá, ávidos por encontrar nosso Madaleno, mas em vão.

O Madaleno que encontramos, sem um único dente na boca e vestido com trapos, não guardava qualquer semelhança com o nosso Madaleno. Aproveitamos para demonstrar interesse pelo estado desse Madaleno, ao que nos comunicaram que não tinha família e que esperaria ali até ver se melhorava um dia. Eu duvidava que alguém pudesse melhorar ali.

Logo de entrada, havia muitos pacientes do manicômio andando de um lado para o outro, como se brincassem de ciranda. Chocava a visão de promiscuidade que estava por todos os salões e também no pátio da instituição. Algumas pessoas defecavam sem o menor pudor ao lado da cantina no pátio principal. Foi uma das cenas mais horríveis que já vi em minha vida.

Jamais me senti consolada, durante todo o tempo em que empreendi (em conjunto com a família de Madaleno), minha busca por ele – vivo ou morto. Os anos que passaram trouxeram algumas pecinhas do quebra-cabeças que, no entanto, não tinham nenhuma garantia de veracidade. Inúmeras foram as pistas que seguimos, sem que lográssemos alcançar êxito.

De certa feita, nos disseram que havia um corpo com as descrições de Madaleno enterrado em uma área de floresta à margem da rodovia na saída sul da cidade do Rio de Janeiro. Dessa vez, fomos até lá eu e o pai de Madaleno. Ocorreu que aquele esqueleto que vimos era de um homem muito mais velho que ele e nosso reconhecimento foi negativo.

De outra feita, um marginal que se autodenominava Madaleno das Cruzes, de tamanho e proporções do nosso Madaleno, esperava por nosso reconhecimento em uma delegacia na baixada fluminense. Chegando lá, o pai e a mãe de Madaleno (não fui com eles essa vez), estremeceram ao ver o elemento. Não, claro que não era ele.

Passaram os anos e, aos poucos, fomos aceitando a morte de Madaleno como uma verdade. Tivemos que concordar com a opinião do político alagoano que nos dissera que nosso ente querido estaria morto. Não foi fácil passar a falar dele com os verbos no passado, como se não existisse mais, como se não fosse mais nos dirigir aquela palavra espirituosa que só ele teria.

Pois, então: Nem na delegacia, nem na cova rasa, e nem no manicômio encontramos Madaleno. Dizem que somente o tempo traz a paz de que tanto necessitamos e, o que mais tivemos depois do desaparecimento foi o tempo para nos enganar com pistas falsas – que nos levaram a lugares tristes onde pouco de fortuna, de sorte, pode haver.

Atravessamos os anos de chumbo, desde a promulgação do AI-5 em 1968 – com a suspensão de direitos de todos os cidadãos brasileiros – passando pelo arrefecimento sensível mas ainda autoritário dos anos de 1970, quando centenas de pessoas foram dadas por desaparecidas – até mais adiante com os anos de abertura no começo dos anos de 1980.

Aproximamo-nos de dezenas de organizações de direitos humanos durante todo esse tempo sem, no entanto, conseguir nada. A recomendação era a de que nós esperássemos pouco, mas que a nossa espera não seria em vão. Precisávamos, decididamente, de um túmulo para Madaleno. Foi aí que, em 1982,resolvemos construir um no cemitério de Umbuzeiro Grande.

Mas, o que contaríamos às gerações seguintes, aquelas que nos perguntariam como e porquê nosso amado Madaleno morrera? Contaríamos aquilo que fomos montando com as pecinhas que nos trouxeram no correr do tempo seus amigos de faculdade; pessoas que o conheciam dos encontros de resistência e milícia; e relatos anônimos daqueles que tinham medo de falar.

A estória seria assim: Rapaz novo na cidade, calouro na faculdade de direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro, frequentava encontros com outros alunos tidos pelo regime vigente como subversivos e planejava com eles a reação armada contra o regime de repressão militar. Alguém os entregou para a polícia e o rapaz foi preso no DOPS.

Seu paradeiro, uma incógnita. Segundo registros que falam de sua detenção e prisão nas dependências do DOPS, o rapaz ali permaneceu por apenas dois dias, quando finalmente foi libertado e saiu sozinho pelas ruas adjacentes ao prédio da instituição policial de sua própria vontade. Dois soldados lembravam-se dele e do dia de sua libertação.

Contra a versão oficial do DOPS, há muito que dizer. Madaleno deu entrada nas dependências do lugar, como consta nos documentos, em novembro de 1967. Um pulôver de lã que lhe pertencia foi encontrado no chão de uma cela, sugerindo que o rapaz partira deixando para trás algum de seus pertences: Para os amigos e família, a versão oficial era apenas mentira.

Deixo, agora, essa estória para os mais novos: É para que possam aprender com a vivência dos mais velhos sobre os perigos da vida. Também gostaria que vissem nesse relato uma estória de amor que, quis Deus ou quiseram os seres humanos mais próximos do casal, nunca alcançou seu lugar entre os vivos. O noivo, muito amado, falecera antes da igreja e antes da noiva.

Para cada um de nós, ao longo de quase cinquenta anos, um aprendizado. Para a tia Irene, de Madaleno, esperei que aprendesse que não era errado lutar contra os que têm poder, contra os homens mais conservadores, ou contra a ditadura. Mas essa lição não sei se algum dia levaria para a cova, pois o coração de alguns seres humanos são difíceis de ser tocados.

Para a tia Gilda, a quem eu erroneamente chamava de ‘a bruxa’, desejei que fosse inundada de amor no coração, e pudesse assim compreender que, à sua volta, outros seres pequenos como eu menina e Madaleno menino podíamos ter boas razões para nos amar e desejar levar esse sentimento para além da linha da puberdade – a velhice juntos.

Aprenderam muito também minha mãe e meu pai, desejando traçar cada passo de meu destino. Sabiam que não faziam mal, pois a intenção de dar à sua única filha uma boa formação intelectual que a preparasse para a vida era inquestionavelmente bela. Mas acredito que com os anos foram dando algum espaço em suas mentes para a palavra amor.

Os pais de Madaleno foram os que mais sofreram com o passar dos anos. Eram gente muito simples, que vivia de um sítio onde tinha criação de gado de leite, então no início não sabiam se deveriam sentir-se envergonhados e pedir desculpa pelo filho morto ou se deveriam cobrar das autoridades uma resposta para o porquê de seu desaparecimento.

Aos sessenta e oito anos ouço o Madaleno moço me chamar à janela, para me presentear de novo o anel dourado. Fecho os olhos em minha cama e ele conversa comigo, falando da pequena feira na praça da igreja e da quermesse que acontecerá lá daí a alguns dias. Queria de mim que lhe assegurasse minha presença, e então eu assentia. Nos veríamos lá, sem falta.

“Cecília, toma o anel e guarda”, dizia o fantasma de Madaleno no topo de uma escada, diante de minha janela. Eu não me levantava porque sabia que não o encontraria lá, murmurando para não acordar o restante da casa. Eu lhe perguntava, “E acaso não sabe que já é o bastante o anel de lata, que me deste aos onze anos? Não quero ouro, basta-me a lata, saiba você.”

E o fantasma de Madaleno parecia querer caçoar de mim, rindo-se todo por dentro. Apesar da idade, ainda me sentia ruborizada ao ouvir Madaleno falar de amor comigo. Já me casei uma vez, conheci a vida de mulher, e enviuvei. No entanto, tal qual uma adolescente, ali estava eu deitada na cama, envergonhada com o que me dizia à janela o rapaz de quinze anos de idade.

Tenho que me lembrar de pendurar bandeirinhas coloridas de festa junina ao redor da árvore do fundo de casa. Também essa semana, desejo chamar a criançada da vizinhança para fazermos fogueira no quintal. Na noite de São João vamos ter cocadas e pés-de-moleque para as crianças e, para os mais velhos, não pode faltar quentão.

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 30/03/2014
Reeditado em 30/03/2014
Código do texto: T4750176
Classificação de conteúdo: seguro
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