Sete dias de um verão
 
 1º dia
 
Já eram raros os passantes no calçadão da Avenida Atlântica, cerca de cem metros à frente. No entorno, um ou outro apartamento iluminado. A semana inteira, o prédio do outro lado da rua transversal, à direita, permanecera às escuras, salvo algumas poucas lâmpadas acesas na garagem sem paredes e a claridade nos fundos, que vinha da casa do zelador. Eu começava a me sentir só, isolado do mundo, apreciando aquele vazio de temporada de praia recém-acabada, sentado na sacada e empunhando uma reconfortante cuia de chimarrão, apesar do calor inclemente.
 
Ao cair da noite da sexta-feira, porém, meus olhos despertaram para a luz que se acendeu num apartamento do quarto andar do tal prédio dormente. Curioso, coloquei-me naturalmente na espreita, aproveitando-me da visão privilegiada que a minha instalação propiciava, dois pavimentos acima, na esquina da rua da fachada do meu prédio com a rua da fachada do outro.
 
Gente que veio para o fim de semana, pensei. Quantos seriam? Haveria crianças? Quem sabe um grupo de jovens que chegava para zonear no apartamento dos pais.
 
Não demorou, e uma mulher cruzou a sala carregando pequena bagagem. Achando que atrás viriam os outros, talvez o marido, perdi o interesse na bisbilhotice e abandonei o posto de observação.
 
Mais tarde, retornei. A mulher punha cuidadosamente a mesa. Percebi, então, que ela preparava apenas um lugar. Mesa posta, sentou-se elegantemente ereta e iniciou o jantar. Sozinha, e eu solitário aqui, pensei; que desperdício de espaço!
 
Antes de me recolher ao berço, dei uma última olhada. A loura estilo chanel estava estendida no sofá branco, provavelmente assistindo à televisão, que do meu ponto de vista era impossível enxergar.
 
2º dia
 
Enquanto esperava a leiteira apitar, e o ruido do vapor da cafeteira italiana avisar que o café estava pronto, fui espiar o tempo na sacada. O apartamento da mulher ainda estava com as janelas fechadas. Não é de se levantar cedo, deduzi.
 
Saí para a caminhada habitual na praia. Na volta, de novo na sacada, dei com os olhos nela sentada à mesa, entregando-se ao desjejum. Não sei bem por que, mas me senti feliz. E menos só.
 
À tarde não a vi. Somente à noite ela reapareceu na rotina de arrumar a mesa, sentar-se ereta e jantar. Depois, novamente no sofá, deitada de costas.
 
Eu, sentado na sacada com a revista da semana nas mãos, a cada quarto de hora interrompia a leitura para dar uma espiada. Confortava-me vê-la na mesma posição.
 
3º dia
 
Praticamente a mesma rotina do segundo dia. Salvo o aumento angustiante da frequência com que eu a espiava. E isso fazia subir ainda mais a temperatura do verão mais quente dos últimos 53 anos.
 
4º dia
 
Se ela demorava a aparecer, eu entrava em estado de aflição. Quando ela aparecia, não tirava os olhos da sala. Ao deitar-se no sofá, talvez ela pudesse sentir minha companhia ao lado.
 
5º dia
 
Amanheci disposto a encontrar um jeito de falar com ela. Fácil: era só descer, atravessar a rua, perguntar ao zelador o número do apartamento e teclá-lo no interfone. E daí?
 
Não, não era uma boa ideia. Ela bateria o interfone e daria uma bronca no zelador. Melhor deixar o homem fora disso.
 
Poderia ligar no celular. De que jeito? Se o zelador soubesse o número, acredito que mesmo diante de uma nota de cem ele não o revelaria. Olha eu aí aventando uma hipótese de suborno. Coisa feia. Provável efeito das notícias de corrupção que entopem os noticiários.
 
Se ela tivesse telefone fixo... Pensando nisso notei que ela levantava-se do sofá. Foi até um pequeno console junto à parede e voltou com um telefone branco, sem fio, colado ao ouvido. Alegrei-me. Então tem um telefone fixo, coisa rara hoje em dia em residências de veraneio.
 
Precisava descobrir o número. Pela posição do apartamento no prédio, pensei nas possíveis combinações. Lado esquerdo, ímpar. Direito, par. Na maioria das vezes é assim. Por essa lógica, o dela seria par. Quarto andar; começa com quatro, desde que não haja apartamento térreo. Logo, poderia ser 42 ou 402. O nome da rua obviamente eu sabia. O número do prédio, estampado em grandes algarismos na entrada, estava ao meu alcance visual.
 
Com o endereço completo, acessei a Internet e encontrei um site que dá o telefone a partir do endereço. Em três tempos, obtive o número. Era só ligar. Fui para a sacada com o celular em punho e iniciei a digitação. Não completei.
 
Fiquei matutando no que dizer quando ela atendesse, caso o número estivesse correto. Não poderia assustá-la nem causar desconfiança. Pelo menos em excesso. Precisava encontrar uma abertura. Afinal, eu não estava querendo nada de mais. Apenas conversar, quem sabe uma volta no calçadão, um sorvete ou cerveja. O que viesse depois seria lucro.
 
Pensei em desistir. Muita cara de pau, ela diria. E acho que eu concordaria com ela. Hesitei um pouco mais e finalmente decidi. Todavia, parei de novo.
 
Por fim, resolvi que não seria de bom tom telefonar. Não nos conhecíamos, sequer nos vimos frente a frente e ela nem uma única vez havia, até então e que eu tivesse visto, olhado para o meu lado, onde me encontraria suplicante pendurado na sacada. Melhor uma abordagem pessoal. Para mim e para ela.
 
Passei o dia de tocaia, na expectativa de que ela saísse. Então eu também sairia depressa e provocaria um encontro casual. No entanto, ela passou o dia estendida no sofá, ou acomodada numa poltrona com um livro nas mãos.
 
6º dia
 
Sem alteração no período da manhã. Permaneci de plantão, aguardando que ela saísse. Ela, lendo o tempo todo.
 
No meio da tarde, não aguentei mais.
 
Segundos depois do primeiro toque de chamada, eu a vi levantar-se, dirigir-se ao console e apanhar o telefone branco. Disse alô.
 
- Não se assuste. Sou vizinho e do bem. Se você olhar para fora, um pouco para cima e à esquerda, poderá me ver no prédio em frente, sexto andar, na sacada.
 
Ela foi até o umbral da porta da sacada do apartamento e, sem dificuldade, encontrou-me acenando. Ergueu a mão esquerda timidamente, num arremedo de aceno, aparentando um gesto involuntário ou inseguro.
 
- O que o senhor quer?
 
- Apenas conversar. Não me recrimine; não pude deixar de notar que você está há vários dias sozinha. Eu também. Então pensei em convidá-la para um sorvete.
 
- Como soube do meu telefone?
 
- Sou da Receita Federal. Sei tudo. Brincadeira, estou blefando. Depois eu conto. Aceita?
 
- Não costumo sair com estranhos.
 
- Sou vizinho, conforme está vendo. E um sorvetinho não nos fará mal. Por favor...
 
Ainda tive de gastar o verbo por uns bons minutos. Ela ameaçou desligar; no fim cedeu. Meia hora depois eu a encontrava na porta do edifício.
 
Do meu apartamento, à distância, não dava para distinguir o seu rosto com nitidez. Por isso, fiquei um tanto surpreso. Uma mulher bela, semblante sereno, cabelos louros tingidos, impecavelmente cuidados. Pela cor das sobrancelhas, eram originalmente louros. Ou porque já sofresse com os fios brancos, ou preferisse aquele tom ao original, recorria à química. Ótimo resultado, contudo.
 
Enquanto caminhávamos vagarosamente no calçadão em direção à sorveteria, fui conhecendo e percebendo detalhes animadores. Mulher clássica, finíssima, doutora em filosofia, ganhava a vida lecionando em universidade, prestando consultoria a grandes empresas, a grupos políticos, proferindo palestras, ministrando cursos. O primeiro livro no prelo. Recém-divorciada.
 
Talvez por se preocupar em manter o perfil esbelto, no bufê de sorvetes serviu-se apenas de duas bolas. Uma de morango, outra de nata. Contive-me na mesma quantidade dos meus sabores preferidos, chocolate e creme.
 
Depois de umas três horas de passeio e papo geral, versando sobre vários assuntos, paramos defronte o seu prédio.
 
- Jantamos juntos hoje? - eu convidei.
 
- Venha devagar, garotão. Não se esqueça de que me divorciei há pouco tempo. Portanto, ainda estou me acostumando com a recente independência e liberdade total. E há feridas para cicatrizar.
 
- Obrigado pelo garotão. Já passei dos cinquenta...
 
- Não é pela idade, é pela ousadia.
 
- Então nos vemos amanhã?
 
- Não sei. A noite é boa conselheira. Quem sabe?
 
Voltei para o meu apartamento carregando toda esperança do mundo. Uma mulher como aquela valeria qualquer investimento para aprofundar a relação.
 
7º dia
 
Assim que me levantei, fui para a sacada. Ao contrário dos outros dias àquela hora, o apartamento dela já estava com as janelas abertas. Acordou mais cedo hoje, concluí. Isso é bom.
 
Preparei a leiteira e a cafeteira, e voltei à sacada com a intenção de jogar-lhe um entusiasmado bom-dia, assim que ela aparecesse. A leiteira apitando e o vapor do café crepitando na cafeteira italiana pediam minha intervenção. A loura ainda não tinha aparecido.
 
Após o café, fui para o plantão no meu posto. Uma mulher morena apontou na sala do apartamento da minha conquista – pretencioso, já contava com os ovos. Logo percebi que era a faxineira.
 
Duas horas de campana e nada. Para não morrer de ansiedade, peguei o celular e repeti o número armazenado na véspera.
 
A faxineira largou o aspirador de pó e foi atender.
 
- A doutora Neusa, por favor...
 
- É o vizinho do prédio da frente? Ela foi embora cedo. Pediu-me para lhe dizer que não fugiu. Só quer um tempo para pensar. E disse que o senhor sabe no quê.
 
Vontade danada de tomar um porre. No entanto, a hora não era apropriada. Saí para caminhar na praia.
 
No almoço não tomei um porre, porém bebi o suficiente para dormir um bom sono e tentar acordar outro, ou pronto para outra.
 
No meio da tarde fui tomar sorvete. Ao passar na frente do prédio da Neusa, vi um homem finalizando a fixação de uma placa de imobiliária no gradil da sacada do apartamento dela: VENDE-SE.
 
Na sorveteria, eu já ia enfiando a concha no sorvete de chocolate, com a ideia de adicionar uma segunda de creme, mas detive-me a tempo. Avancei um pouco mais e peguei duas bolas de outros sabores. Uma de morango, outra de nata. 


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N. do A. – Na ilustração, Poesia de Richard S. Johnson (EUA, 1953).
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 22/03/2014
Reeditado em 27/07/2021
Código do texto: T4739143
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