Marmo morreu (fevereiro de 2014)

O ar fresco de setembro, não muito frio e em golfadas breves, prenunciava timidamente a chegada da primavera no dia sem nuvens, ensolarado. Foi nesse dia que anunciaram a morte de Marmo, filho de Dona Augusta e Seu Argenor, donos do cartório da cidade. Não era nem muito jovem nem velho demais: Contava com algo em torno dos trinta e cinco anos de idade.

Logo que morreu, correu pela cidade um burburinho de que havia sido assassinato. Mas não, não era verdade. Morreu sim de um mal súbito, mas de morte morrida – e não morte matada. Seu corpo foi encontrado na casa de seus pais, nas primeiras horas da manhã. Dizem que Dona Augusta, ao encontrar o filho gelado, deu um grito que ecoou por toda a cidade.

Seu Argenor, muito pragmático, foi até o jornal de Mirandópolis para pedir o anúncio do óbito do filho e para comunicar aos interessados que se realizaria na mesma tarde o velório de Marmo – o qual atravessaria a noite até o enterro, no dia seguinte. Já na rua, de boca em boca, as pessoas foram se apressando a espalhar o recado, ainda antes da publicação no jornal.

Com qualquer que fosse a pessoa conhecida, quem encontrasse pela rua – em Mirandópolis eram muitos os conhecidos para serem encontrados pela rua – Seu Argenor de cabeça baixa, pausadamente, repetia a cada transeunte, “Meu filho morreu”. Fez assim até alcançar O Diário de Mirandópolis, e depois, do caminho de lá de volta até a sua casa.

O Diário tinha circulação vespertina, entregue nas bancas diariamente ao meio-dia. Facilitava-se assim a divulgação do anúncio do velório de Marmo, programado para a tarde do mesmo dia: “Argenor e Augusta Jacobi convidam parentes e amigos para o velório de seu filho Marmo Jacobi, a ser realizado hoje à tarde, na capela do cemitério municipal.” Dizia o anúncio.

No velório não havia muita gente: Apenas alguns amigos da família Jacobi e um punhado de parentes que residiam na cidade. A maioria dos parentes da família residia na capital e, por isso, embora tivessem sido avisados por Dona Augusta através do telefone, não poderiam chegar a tempo para o velório – mas talvez viessem para o enterro.

No cartório, Seu Argenor havia feito muitos amigos. No entanto, devido a disputas políticas na cidade – disputas estas em que Seu Argenor fora obrigado a envolver-se, devido a sua posição importante, de tabelião da cidade – ele terminou por perder quase todos os amigos que tinha e, daí por diante, também terminou por angariar um punhado de inimigos, aqui e acolá.

As vozes polemistas da cidade, aquelas que viam em uma confusão oportunidade para rir-se de uma maldade, não se cansavam de dizer que Marmo havia sido assassinado pelos inimigos políticos de seu pai – afirmação que, de forma nenhuma, condizia com a verdade dos fatos: Marmo tinha uma condição cardíaca e morrera comprovadamente de um ataque fulminante.

Para o enterro, na outra manhã, não restavam mais que quinze pessoas: Havia apenas os poucos amigos próximos e pessoas que não conheciam muito a fundo a família dos Jacobi, mas que permaneceram até o instante em que fecharam o cachão de Marmo – por motivos de solidariedade que a razão desconhece, esses não pareciam querer nada em troca.

Essa foi a última ocasião em que vi a família Jacobi. Também foi a última vez em que vi Marmo. Ou, ao menos, essa foi a última ocasião em que vi o Marmo de carne e osso: Eis que o tempo passou e, passados dois anos desde a cerimônia do adeus, estava em casa acessando a Internet quando deparei-me com a fotografia de Marmo Jacobi em um clube de bate-papo.

Era um setembro em que tudo me fazia lembrar Marmo: Fôramos amigos desde a mais tenra idade, tínhamos a mesma idade e residimos em casas vizinhas. Tomávamos banho na cachoeira essa época do ano, setembro, tempo em que não sentíamos a água gelada no corpo já acostumado com o frio do inverno. Setembro prenunciava o tempo ameno da primavera.

Mamãe me dizia, àquela época de menino: “Francis, tome conta de Marmo na cachoeira para que não se machuque nas pedras. Você tem mais juízo que ele, então é responsável duas vezes; toma conta de você e não se esqueça dele... não esqueça isso.” Nós nos divertíamos muito, saltando de cima da cachoeira, e nunca nos machucamos.

Mas eis que, passados dois anos da morte de meu amigo Marmo, encontro-o vivo em um chat de bate-papo. Era manhã de sábado e eu digitava algum material para as aulas da segunda-feira (sou professor de História). Enquanto mexia nos textos da aula de segunda, teclava em um chat na amigos.com. Passadas duas horas fui então interpelado pelo Marmo virtual.

Seu apelido no chat: Leodecorumbá. Perguntou-me então de onde eu teclava e à procura de que eu estava. Respondi que teclava de uma cidade no interior de minas e que estava ali para me distrair. Se possível, estava disposto a fazer amigos. Meu apelido no chat: Francislei37. Meu interlocutor silenciou por um minuto e depois respondeu, “pode crer”.

Ai, Mãe de todos nós! Ai, Nossa Senhora do Carmo! Meu amigo morto estava ali, teclando comigo talvez de Corumbá, e sob o nome de Léo. A foto do pilantra era a foto do meu amigo morto, havia dois anos, no interior de Minas Gerais. Como seria isso possível? Marmo nunca estivera em Mato Grosso do Sul, portanto aquilo era fruto de uma confusão cibernética.

Marmo utilizava a Internet, com frequência. Sei disso porque com frequência ‘trocávamos figurinhas’ sobre nossas andanças na Internet. Também eu sempre utilizei a rede para transitar pelos mais diversos ambientes virtuais, tal como ele fazia. Resolvido o mistério, não havia mistério nenhum: Alguém que lhe conhecera na Internet havia roubado a fotografia.

Ai, Mãe de todos nós! Ai, Nossa Senhora Aparecida! Como dói a lembrança de um alguém que nos deixou e, no entanto está ali, na tela fria de um computador, bem ao alcance de nossos olhos. Prossegui a conversa como se não houvesse nada de errado e meu interlocutor foi muito breve: Teria de desconectar para ajudar a fazer o almoço em casa. Eu me despedi.

Marmo morreu e alguém usa seu retrato na internet como se ainda estivesse vivo. E o pior é que, provavelmente, nunca mais verei o pilantra que utiliza sua fotografia. Pus-me logo a pensar que, se fosse ilegal, eu o processaria mil vezes. “Amigo Marmo, quisera eu dizer que foi um prazer revê-lo e conversarmos pela ultima vez!”

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 10/03/2014
Reeditado em 13/07/2017
Código do texto: T4722522
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.