UM COPO QUASE CHEIO

Tímida. Construiu-se sem pretender imagem feita, aos poucos foi decidindo quando deveria chegar. Optou por Administração e assim pode bancar o diploma. Viveu três ou quatro amores malaçados, talvez tenha praticado com algum deles. Obcecada por dobrinhas de fita crepe, melancia e caqui, e quase às vezes se encanta por florezinhas de guardanapo. Caso saia de casa. Sempre se, se ousa, recebe uma flor.

De mês em pouco faz visitações a debates e discursos, reuniões e seminários, preenche a condicional vaziez itinerária com um pouco de afair às causas e outras convicções. Tem mas não o desleixe com coisas nenhuma. Traz patética o que pateticamente todos fazem por felicidade. Achado o cão senão o tiro, diria se tratar de pessoa-todo-dia. Encontrar-se-á por aqui ali lá e pouco pois há de notar. Mas está.

Ainda escreve cartas; e doura olhos por não recebê-las – encontra nisso, esperança; disfarça mas passa de vista à mesa, sobram-se contas e despesas a avisos e publicidade; nenhuma é carta; apenas confundem pois que chegam pelo correio. Ainda escreve cartas e pouco faz uso do e-mail. Rede social só é papo à meio palmo, ou dois ou dez. Até dez. Caso interesse dê, seja do que quem almoçou ou se o vizinho vê verde mar caribenho, ela pergunta. Nada como o contato aos palmos: opõem-se às palmas. Às palmas!

Pintaram oportunidades, a dedicação ainda se usa. Vislumbrou sucesso.

Ocorre que timidez não faz por ousadia. Oportunidades não são fatos ainda. Viu-se entrevista por quem mal tem visto de passagem pela vida que ali se exige. Julgou-se sem tônus suficiente na voz. Julgou-se incapaz de assinar, julgou-se pálida, julgou-se inclusive por sem charme. Resignou-se. Cansou-se de julgar e aceitou-se assistente. Haveria futuro. Há de preparar. Ser outra.

Começou pela franja, o cabelo todo pareceu franja.

Imprimiu currículo sem algumas habilidades valiosas.

Optou por óculos de armação verde e nem detalhes.

Marcou chope sexta e fatalmente irá dançar sábado.

Domingo tem almoço das Luluzinhas, casa das amigas.

Semana que vem será a vez das agências de emprego.

Caso usasse a internet, saberia de seus novos cargos.

Revolveu acessar a todas as redes sociais: posta fotos.

Está empregada. Gerente de multinacional. Decisões.

Comprou apartamento. Guia automóvel. Usa as férias.

As Luluzinhas só as vezes: estão todas comprometidas.

Dança aos sábados, mas não suporta as baladas cheias.

Domingo tornou-se aquele tédio parado vazio amarelo.

Recusou parecer-lhe feito Natal sem família, silencioso.

Dessa vez as férias serão em casa. Com o computador.

Conheceu-se como “Lindinha”, como “Manhosa”, como “Frida”, “Mulher_27”, “Madonna_Interior”, “Afim_de_um_bom_papo”, “Garota_Procura”, “Ela_Quer”. Conheceu homens altos que na verdade eram baixos; conheceu atletas, mas praticavam sumô. Ricos que usavam pré-pago, engenheiros que detestavam matemática; e conheceu também homens muito interessantes atrás de um “Ele_40”, um “Bom Moço”, e até mesmo escondido por aquele típico falso “Dotado_23cm”. Os chats dos grandes portais valeram férias divertidas. Achou curioso ser tão desejada. Sentiu receio em atender à única possibilidade real de bate-papo virtual às escondidas: sexo.

Os caras da internet querem sexo. Os caras do mundo real se assustam com mulheres de boa renda ou melhor opinião. Duas verdades que ela aprendeu como verdades. Fadou-se então à crer que por alguma via o destino ofereceria algum bom partido, porém entre os desquitados, ou entre os que já praticaram a vida a ponto de apenas se impressionarem com uma mulher pelo simples fato de ser; afinal, os de cima não aceitam encará-la sem ter de olhar pra baixo ou ter de olhar para frente, já os de baixo raramente olham para cima. Fadou-se então a crer num tipo de crise da mulher moderna. Estava fadada.

Num momento, o som do aplicativo. No momento, era apenas um estranho da empresa. Naquele momento não deu bola. Por outros momentos, o barulhinho insistiu. “Quem é?”. “o jonas trabalho na portaria da empresa a senhora sempre sorri quando chega”. “Ah, oi...”. “ola e obrigado por me aceitar”. “De nada, imagina, boa noite”. “boa noite ateh amanha”. “:)”. No momento, o som cessou. Naquele momento ela se preparou, escovou-se, dormiu. Dali em diante passou a ter vários sonhos e reconheceu quando acordou.

– Olá, bom dia!

– Bom dia. Pelo jeito a senhora dormiu bem! Até abriu a janela do carro hoje...

– Dormi bem demais, Jonas! Tenha um ótimo dia de trabalho.

– A senhora também! – fechou o portão, voltou à guarita.

– Muito obrigada, Jonas, o dia foi tranquilo hoje?

– Sim senhora, hoje foi tão tranquilo que até parecia um sonho.

– Sonho?

– É um sonho a tranquilidade. Quem não sonha com sossego?

– Fato. Tenha um bom fim de dia e aproveite para descansar, Jonas.

– A senhora também, até mais!

– Até.

Fez compras, desenhou móveis novos para a sala, ganhou um angorá – Nico, ficou feliz a cada barulhinho emitido pelo aplicativo, respondia sempre “Olá... Boa Noite... Até mais...”. Jantou saladas de frutas, trocou de carro, recoloriu o guarda-roupas, respondeu “Boa Noite” a cada noite e cumprimentava a qualquer pessoa no trabalho, na rua, no shopping, no teatro e nas manifestações. Mudou-se de bairro, decorou um quarto do novo apartamento para cada um dos três sobrinhos, respondeu outros “Boa Noite, até mais” e tardou a sonhar novamente. Mas sonhou.

– Bom dia, Jonas!

– Bom dia, a senhora está bem!

– Estaria ainda melhor se você deixasse o senhora de lado... E me chamasse de você!

– Está bem, como... Voc... Você quiser...

– Que ótimo! Um boa dia de trabalho, Jonas!

– Para a senhora também.

Ela riu. Sonho é só um sonho, mas a certeza é fiel, e o que todos procuramos desde que nascemos senão alguma certeza definida? Certamente aquele sonho era apenas sonho, não há encaixe, não há química possível de solução. Mas foi um sonho, e antes ainda outro sonho, e desde então uma alegria estranha tirava o desconforto do corpo e colocava alívio no lugar. Alívio? Euforia!

– Boa tarde, Jonas, boa tarde!

– Para a senhora... Você também!

– Até mais... Tarde!

– Até...?

No teclado, à noite:

...: “Mas Jonas, não entendo mesmo nada de eletricidade e ninguém à essa hora, portanto, muito muito muito obrigada pelo seu suporte, você não tem noção de quanto me ajudou...”

Jonas: “naum tem d q.... amigo eh pra q?”

...: “Sorte de quem tem um amigo como você!”

Jonas: “minha sorte a senhora me te como amigo”

...: “Assim você me deixa feliz!”

Jonas: “feliz to eu”

...: “Ai que fofo! Jonas... É um sonho um amigo tão fofo!”

Jonas: “nao me do bem cm sonho mas obg a senhora eh mto gentil”

...: “Não se dá bem com sonho? Mas... E se alguém sonhar contigo, por exemplo?”

Jonas: “se for sonho bom a gente sempre realiza”

...

...

...

Conexão caiu, chuva forte, nada de luz há dez quarteirões. O bairro chique não é imune. Sequer o aparelho celular conecta. Noé passava pela cidade. Resta dormir. Restou na cama pensar na conversa anterior e determinar: “não, não é ele com certeza...! Estou enganada... Enganadíssima! Não pode ser ele, nem charme tem! É certo que sabe colocar as palavras com precisão na conversa, é certo que não é qualquer tipo que só quer sexo, é certo que conheceu-me antes e depois pela internet, claro que não é ele! Não tem nada a ver"...

– Bom dia, Jonas! Como foi a sua noite?

– Choveu tanto que a casa vira poça e a rua vira brejo.

– Que triste. Mas, você está bem, né? Perdeu alguma coisa?

– A gente vive é pra recuperar, quase nada a gente perde.

– Puxa... Bom, sinto muito se algo ocorreu. Caso surja necessário, tome aqui o cartão, ligue-me quando precisar... Creio que estará sem internet hoje, certo? Aliás, desculpe-me por ontem, saí sem me despedir, a internet...

– Lá também. Sem problema. Toda vez que falo em sonho é isso. Meu negócio é mesmo a realidade, entende? A realidade é recuperar o que tiram da gente... Por isso acordo cedo todo dia.

– Ok, Jonas, pois bem... Precisou, estou aqui neste número, ok?

– Ok, obrigado, ligarei sim.

– Que bom! Espero que sim! Um bom dia de trabalho, dentro do possível.

– Se estamos vivos é porque é possível. Para a senhora também.

Na saída Jonas não mais estava lá. Os porteiros eram outros. Aqueles que tiveram casa afetada pelas fortes chuvas precisaram sair mais cedo. Foram duas semanas sem ver ou conversar com Jonas. Ela desejava tirar a limpo o sonho, e ter de vez a garantia de que Jonas era outro. Nesta noite que nos cobre, enfim, o som do chat e o “ola” de Jonas.

“Oi, Jonas, quanto tempo, por que você não me ligou, o que houve? algum problema grave? não te vi la no trabalho não te vi em dia nenhum nem lá nem aqui a empresa não sabia como ter contato com o pessoal terceirizado você acredita que não me deixaram saber o seu telefone mesmo sendo você das antigas na empresa? sabe Jonas eu me preocupei puxa nem pude agradecer você me ajudou com algo tão distante de mim que é a eletricidade sabe nossa que coisa como você está?”

“de boa tranquilo ficamo sem rua a prefeitura um dia volta lá to no meu irmão”

“Ah, que bom que você está bem!”

O papo fluiu. Ela estava cada vez mais decidida a marcar um encontro para provar que Jonas não era quem era.

“Que tal no Centro de Convivência?”

“pod se onde acha melhor”

“Ok, tudo bem, te pego lá... às 4 ou às 5?”

“Tanto faz, na hora a gente vê”

É ele. As frases se colocam como com Diadorim. É ele! Que exagero há nisso? – certeza é certeza, não é? Achei! Certamente achei! Não, não é belo. Não, não é desquitado. É solteiro. Ele escreve mal, mas fala muito bem. Simplicidade quase rústica com sabedoria. Não, não é deste mundo, mas a certeza é o que queremos não é? Achei e pronto! Não falo em casar, ter filhos, encher essa casa de gente e barulho e festa e o meu coração se encher de proteção e o meu corpo se encher de carinho. Não! Negócio é realidade, sonho é pipoca de cinema, quanto maior o pote maior a fome se maior a fome maior a gula quanto maior a gula maior o estigma e o estigma é só o que os outros pensam. Imaginam. Pois há sempre pouca gente que entendeu o filme.

Da praça, vão ao Café. Do Café seguem ao restaurante. De lá, para o motel. Ela não sabia que esse desejo todo existia na prática, ela não sabia que sabia ser ousada, ela fica de pose em pose sem notar a pose e fez o que nem pensava haver fazer. Nem consegue nele encontrar detalhe que a faça interessar e entende que aquilo o que é produto do sonho sonhado fica quente quando está na vida. Isso tudo repetido quatro ou cinco vezes, coisa que ninguém proporcionou. Que noite!

– O que é um dia perfeito para você, Jonas?

– Qualquer dia pode ser perfeito quando há uma noite antes dele.

Ela terminou a madrugada abraçada e suspirava ao aceitar cada frase dele vinda como fosse uma descoberta de veredas. Foi ao trabalho na segunda com sentido de presentear o dia, instinto produzido de um tempo pra cá, suficiente para certificar-se de que a noite com Jonas no motel seria um fato repetido ao costumeiro.

Repetiram, sempre no apartamento dela. Algumas noites ímpares, depois as pares, e algumas noites não. Ela começou a gostar e deixou-se afim. Tinha mostras de que não esteve afim, mas agora provou que estava, agora as amigas saberão, agora não é sonho fato que é realidade. Esse Jonas a envolveu inteira, o apartamento será então remodelado, o som do chat toca, ela está no banho, o som do chat toca outras vezes, ela ainda está no banho.

“Quem é você, ...? O que você quer com meu marido? Vocês conversam o que por aqui? É trabalho?”.

Chegou ao expediente e passou reto pela portaria, apenas trocou uma palavra quando o almoço já se encerrava:

– Nida, você já saiu com alguém da empresa?

– Ainda não. Por que?

– Tenho curiosidade em saber quem já saiu com quem.

– Pergunte à Nani, ela sai e sabe.

– Nani, ontem tive uma curiosidade: quem sai com quem aqui?

– O pessoal da manutenção e os caras da portaria é que dominam a área...

– Que coisa! Uma conhecida que trabalhou aqui há uns anos disse que um cara da portaria certa vez se passou por gentil solteiro, seduziu a moça, mas era casado...

– (interrompe) você também caiu nessa, né, flor? Foi o Jonas, né? Pois é... A Rosária, mulher dele, nem imagina, mas aquele sujeito sem charme nem jeito nem perfume nem concordância consegue levar para cama quem ele quiser!

– É mesmo...?

– Quer saber? Quem comandou essa empresa há três anos?

– Susana Cabral.

– Quem era responsável pelos acordos estrangeiros?

– Geórgia Lima e Souza?

– Ela mesma. E quem aqui trabalhou e casou-se com aquele ator maravilhoso?

– Carolina Seixas!

– Pois é... Pode?

– Mas, o que elas têm?

– Caíram no mesmo truque que você caiu. Na mesma armadilha, do mesmo caçador.

– Caramba! E... Ele fez isso com todas?

– To-di-nhas!

– Caramba! Como ele consegue?

– Penso o mesmo! Como caem nessa não é? Se preocupe não... Quer a melhor?

– Melhor?

– A mulher do presidente anda tão sorridente, percebeu já?

– Até ela! Pois bem, uma pós-menina casada com um senhor tende a... Mas com o Jonas?

– O Jonas!

– A menina tem estilo Jackie Kennedy...

– Até a menina!

– Como elas caem nessa?

– Também me pergunto sempre. Eu até achei que estivesse engravidado, pode?

– Do Jonas?

– Vamos mudar de assunto...?

Ela voltou para casa sem muito entender o que ocorria. Pensou ser consigo algum problema durante as quarenta e oito horas até então, mas a partir dali entendeu que não era exclusividade dela ter caído onde caiu. Gostou do sexo, e acredita que o sonho daquela noite tenha a ver com o postulado extraído de Platão, a imaginação figura constante e plena. No momento de carência um pedido de amizade na rede social criou aquela atmosfera. Daí adiante, dormiu ao sonho e acabou por se encantar com a personagem do sonho.

Jonas tinha essa intenção, mas até o momento tenta entender porque ela não abre a janela do carro e voltou a tratá-la por senhora. Já ela colocou-se à disposição de diversos temas da autoajuda. Percebe que o caminho é equivocado, mas a certeza – aprendeu – é feita de vários chutes no ar. O que melhor preenche não é determinar se o dia valerá ou não à pena todos os dias a partir de um futuro (tomara!) será próximo, mas o motivo em passar pela portaria e dirigir de volta pra casa, ao som de um jazz qualquer, colocando na ideia se as outras tiveram ou não além de uma noite, com Jonas, a convence. Os dias que valeram à pena ou os dias que poderão vir a ser? – eis o sorriso.

A forma das coisas depende mesmo da forma com que as vemos.