Tiramisù (dezembro de 2013)

Tomei mais uma dose de creme de cassis e pousei o copo sobre a mesa. Mirei sua face mais uma vez, mas desta vez permaneci em silêncio. Pus-me a mexer com o guardanapo, deixando-o cair parcialmente dentro do prato, estendido bem na borda da mesa, entre os talheres utilizados no almoço. Lá fora, a tempestade não dava sinal de apaziguar-se.

“Uma moça deve manter as boas maneiras à mesa” – pensei. Depois abri meus olhos e balancei a cabeça para disfarçar, fazendo um gesto rápido de que estava prestando atenção na conversa. Na sequência, fiz também um gesto grave, franzindo a testa e, só então, estendi as mãos para recolher o guardanapo, que pendia para o chão, na beirada da mesa.

Meu nome é Júlia. Tenho vinte anos e estudo para entrar no balé do teatro municipal. Nesse momento, em que termino o almoço com meu pai, a memória de minha vida com a dança surge em mim por completo, como se não houvesse feito outra coisa na vida. Procuro demonstrar interesse na conversa com meu pai, mas as lembranças me tomam por inteiro.

Meu pai procura fazer com que me esqueça do teste de dança que fiz nesta manhã – entretanto, não é fácil desvencilhar-me de toda a minha história e, acima de tudo, da lembrança dos breves passos que dancei hoje. É verdade que danço desde os sete anos de idade, e por isso, não deveria estar preocupada com o teste para a seleção.

Tudo correu tudo como esperado com a audição de balé no municipal. Não teria nenhuma razão para acreditar o contrário: Dancei um noturno de Chopin, rodopiei duas vezes, e sorri o tempo inteiro. Pensei, “O que poderia ter dado errado?” – distraidamente, dei um pequeno sopapo na mesa, jogando a faca do almoço no chão. Papai olhou para mim surpreso.

Estava surpreso não com o fato de ter derrubado o talher da mesa, provavelmente, mas com minha reação, nervosa: Assim que percebi que a faca caíra no chão, eis que ergui involuntariamente os dois braços, fazendo um gesto grande de surpresa. De fato, quando ergui os braços, agi de modo a impedir a faca de cair ao chão, mas não fui rápida o bastante.

Lá fora, chove. A Tempestade se acercara do restaurante e os pingos de chuva contra as janelas fazia com que fosse impossível enxergar o lado de fora. Também um ruído – confesso que desagradável – vinha da chuva que desabava no telhado. Apontei para cima e fiz a menção de que estaríamos ilhados ali. Meu pai assentiu, sacudindo a cabeça, meio entorpecido.

“Talvez desejássemos um cafezinho”, aproximou-se da mesa e nos disse o garçom. Papai aproveitou a chance para pedir outras duas doses de creme de cassis, oportunidade na qual eu o interrompi para dizer que não, se não desejasse ver a mim bêbada. Ele prosseguiu, “que então trouxesse apenas uma dose de licor”, cruzando os braços e pondo-se à espera.

Papai parecia não notar, mas a faca atirada ao chão fez com que eu retornasse à mesa, literalmente. Meus sentidos todos, até então, haviam sido tomados pela manhã de seleção do balé municipal. Também toda minha história de vida, anterior àquele instante, caíra sobre mim como se a água que caía do lado de fora houvesse desabado, como tromba d’água, em mim.

Assim disse meu pai, Seu Murilo, em tom grave: “Minha filha, que cara é essa?” “Vou acreditar que não gostou do almoço.” Suas palavras despertaram em mim toda a atenção do mundo. Eu lhe redargui, “Não, pai.” E sorrimos os dois juntos. Meu pai tomou as minhas mãos em suas mãos, apertando de leve as pontas de meus dedos.

O garçom trouxe uma dose do licor de cassis para o meu pai e, conforme lhe pedi, retirou a faca que estava no chão. Também, atendendo a um aceno meu, retirou da mesa os pratos e talheres do almoço, sobrando apenas as duas taças com água e o pequeno copo de licor de meu pai. Aproveitei o ensejo para encher uma taça de água, sorvendo o líquido a um só gole.

“Papai...” começo a puxar conversa, “Você sabe o que é...” e prossegui, “É o balé, papai... não consigo tirar isso da cabeça... mas acho que você me entende, papai...” Ao que ele me responde, um pouco solene, “Paula, entendo, você é minha filha, sabe que de ti para mim não há nenhum segredo... E eu conheço cada expressão de sua face.”

De repente, um silêncio profundo como uma fossa abissal do mais profundo dos oceanos caiu entre nós dois. Acho que o tom solene do comentário de meu pai me desconcertou: Aquele negócio de ainda ser sua filhinha, de conhecer-me como quando era criança... Aquilo me desconcerta e eu corei – confesso que um pouco envergonhada por ter corado.

A porta da frente do restaurante abriu ruidosamente, permitindo a entrada de um casal tão ruidoso quanto a tempestade que tamborilava sobre as telhas do restaurante. Estavam ensopados, mas ainda assim, acharam a ocasião propícia para se divertir. Quando os dois entraram, eles gargalhavam. Queriam saber se a cozinha estava aberta para o almoço.

Um garçom, meio que mal-humorado pelo fato de ter de atender o casal de marrecos encharcados (ele de toalha na mão), assegurou-lhes de que ainda haveria tempo. Foi quando tive a ideia de pedir ao nosso garçom uma sobremesa – algo para ajudar a romper com o súbito silêncio entre mim e meu pai – pedi tiramisù. É uma torta.

Chamo o garçom e faço o pedido do doce italiano. Nome estrangeiro, mas algo muito simples: Doce de ovos, biscoitos champanhe e queijo, basicamente. Fui apresentado a ele por minha mãe, quando fiz oito anos, na festa de aniversário... Mamãe falecera, fazia esta semana, dez anos – e tenho certeza que papai não esquecera – explicado o motivo de nosso silêncio súbito.

O garçom trouxe-me o doce e papai me olhou, meio cúmplice: Sim, lembrou-se do doce, lembrou-se da festa de aniversário, lembrou-se de mamãe falecendo precocemente, muito nova, e ele lembrou-se do que restou de uma bela família – nós dois. Tudo (o balé, o almoço, o doce, a chuva) convergiram afinal para esse momento. Restaram mamãe, nós, e o silêncio.

O garçom volta com um pedaço de tiramisù,novos talheres, e um guardanapo limpo. Assim que ele nos deixa novamente a sós, aproveito para limpar o rosto na altura dos olhos e das sobrancelhas. Um filete de lágrimas havia borrado parte da maquiagem – vejo no espelho que carrego na bolsa. Que me perdoem os que não sabem ser piegas: Ainda não souberam amar.

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 23/12/2013
Reeditado em 23/12/2013
Código do texto: T4622280
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