Voltar à carne (novembro de 2013)

Conduzia o pequeno cão rente ao corpo delicado de mulher, seguro na pesada corrente que lhe envolvia pesadamente o pescoço – muito pequeno – de filhote. “Vamos Topi, junto.” Era o início da caminhada diária de Sara e Topi. Ela, tentando controlar o ritmo do cachorro, enquanto ele avançava sobre cada montinho de terra ou saco de lixo na via.

“Preciso voltar a mim, voltar à carne.” – pensou a mulher. Não estava alegre ou triste, mas pensativa. O cãozinho tentava fugir ao roteiro nas esquinas, como se procurasse traçar outras retas dentro do quarteirão. Sara tinha que intervir, dando-lhe rápidos puxões na guia, seguidos de reprimendas: “Não aqui, quero junto!”, “Senta!”, “Deita, Topi!”

O pequeno filhote de pastor alemão fingia obedecer-lhe, sentando e deitando sob seu comando, mas em qualquer desatenção de Sara o cãozinho voltava a puxar sua dona para outra esquina, especialmente se isso quisesse dizer perto de um grande saco de lixo. Era vagabundo o animalzinho, adorava se regozijar no lixo.

Esse dia, em especial, a dona do animalzinho estava absorta demais em seus pesares para que pudesse devotar a devida atenção ao malfazejo do cãozinho. Sem que ela mesma percebesse (ou quisesse perceber), era o filhote quem lhe conduzia pelas ruas no entorno de casa. Sendo assim, andavam os dois em um zigue-zague muito engraçado pelas calçadas.

Mas ela divertia-se com o animal que, para um animal pequenino, só tinha os atributos verbais que lhe davam. Pois, na verdade, era quase adulto e possuía uma força física para poucos que pudessem se aventurar a guiá-lo pelas vias. Sara se aventurava. Afinal, Topi lhe divertia latindo para os pombos, e tentando devorá-los, enquanto esses se punham em revoada.

E voltava-se Sara de novo a si, como uma sonâmbula que se volta para o sono profundo, em um sono profundo no qual de nada importa o mundo exterior ao sonhador. Seu único elo com a realidade, na viagem semionírica, era o pequeno cão: ele chamava a atenção da dona para um desnível na calçada ou a necessidade de desviar-se de um punhado de cocô.

Era divertido navegar no ar, mas era mais divertido ainda deixar-se conduzir por Topi. Quando os desvios de trajetória eram muito grandes, quando o cãozinho queria mudar de esquina, Sara interferia pondo força na coleira. O animalzinho sentia e não interferia. Às vezes, verdade que poucas vezes, ele obedecia a algum comando para sentar ou deitar.

A tarde caía enquanto ziguezagueavam os dois: filhote (Topi tinha quatro meses) e sua dona Sara. Não tardaria para anoitecer e, sábado que era, tinha compromisso para a noite. Esse sábado sairia com Rui, o namorado; e o casal iria provavelmente a uma casa de churrasco argentino em um centro comercial no centro da cidade.

Sara apreciava sua companhia, e lhe encantava o restaurante El Bamba. Às oito e meia em ponto estaria a tocar a campainha em casa. Não eram seis horas ainda, então sentia que podia ainda prosseguir com o passeio de Topi pelas vizinhanças. Uma vez e outra, novamente tinha que Sara retirar algum punhado de lixo da boca do cãozinho.

E o que lhe passava dentro, no divertido sonambulismo de corpo e alma presentes ou, no outro extremo, por excesso de consciência, o que lhe passava ao voltar à carne, retornando à visão do puro momento a julgar seus passos curtos, julgar sua direção, julgar sua existência real? Sara estava pesarosa, a pensar na noite que chegava, na tarde que se esvaia.

“Não sei o que dizer, não sei o que falar para o Rui.” – falou baixinho para si mesma e continuou, em pensamento – “Quero dizer que não te amo, quero dizer que voltei à carne, entende Rui?” Um dia, havia uma semana, ao passear com o cachorro, caiu em si: gostava de Rui mas não o amava. Desde então, passou a pensar na maneira de comunicar-lhe isso.

“Foooooooooom!” – buzinou o veículo enquanto freava quase em cima de Sara e topi. Acordando de seu sonambulismo divertido, Sara fez com a cabeça que, por favor, a perdoasse. Sua desatenção quase causara um acidente: a poucos centímetros do focinho de Topi estava o pneu de um taxi. Por pouco não perdia o focinho.

O motorista assentiu e acelerou pela rua afora. O coração de Sara palpitava: “Tum-tum, tu - tum-tum...” Abaixou e deu um abraço em Topi. Conversou baixinho com o cão: “Devo dar mais atenção a você quando me guia. Eu acho que você sabe melhor por onde anda, pois seu instinto para andar no mundo é melhor que o meu. Toma um beijo e vamos embora.”

Os dois deram meia-volta e se puseram a retornar para casa. Topi parecia especialmente feliz, contente com os agrados que lhe fizera Sara. Sara sorria desfraldada, solta aos ventos, enquanto tentava impor uma pressão leve em Topi para que não se desviassem demais do caminho. A tudo, o pequeno pastor alemão assentia de bom grado.

“Rui vai estar em casa às oito e meia: tenho que me preparar para a noite. Mas, e o que vou falar? Como explicar a ele a diferença entre gostar e amar? Somos um casal de trinta anos, não somos mais crianças... Haveria ele de compreender que ao cair em si, um dia, lhe ocorreu separarem-se?”

Sonambulosamente, tudo lhe era divertido, não havia muito pensar, assim prosseguiria o relacionamento dos dois por tanto tempo quanto ela pudesse deixar-se conduzir por Topi... ou, por Topi não, mas, pelo sonambulismo divertido em que o que importa mesmo é deixar-se conduzir – talvez pela vida, talvez pelo destino, às vezes por Topi.

Ao contrário de tudo isso, Rui teria que compreender que havia também na vida o cair em si, o voltar à carne – assim se expressava sua mãe, baiana de muitos predicados, também com dotes linguísticos. Sara voltou à carne um dia e percebeu que toda a sua existência confluía para um rio distante do de seu namorado. Já não o amava mais.

Por um instante, enquanto atravessava uma rua, teve a impressão de avistar o taxi que quase os atropelara. Fosse o taxi ou não, não importava. E o carro já ia ao longe, em alta velocidade, é possível que para buscar algum passageiro. Já estavam na rua de casa, e Topi encontrara um saco de lixo apoiado a um muro. Dessa vez, Sara permitiu que o cãozinho se esbaldasse.

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 24/11/2013
Reeditado em 13/07/2017
Código do texto: T4585144
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