REI MORTO REI POSTO

A favela da Consolação era dominada pelo grupo do Formiga há anos. Ele foi parar ali quando se mudara para a capital do estado do Rio, fugindo da seca do Nordeste. No começo até tentou trabalhar na construção civil, mas o salário era baixo e sua ambição, enorme. Aos poucos fez alianças com a bandidagem local e com a sua sagacidade, golpes de sorte e algumas mortes nas costas, passou a mandar na comunidade.

Formiga trazia todos à rédea curta, e mantinha o respeito e a lealdade da população, sendo justo à sua maneira. Havia aqueles que realmente pareciam acreditar que a vida melhorara depois que ele se tornara chefe. O comércio prosperava, não havia mais guerras pelo poder, e os compradores de drogas se sentiam tranquilos para adquirirem o produto ao pé do morro.

O sistema que garantia a paz parecia fluir sem maiores problemas, mas Formiga não descuidava dos negócios e da segurança, entretanto, sentia-se cansado. Já estava com setenta anos e não tivera filhos homens. Talvez acabasse por escolher um de seus subordinados para que o sucedesse, porém não era bem isso que sonhara.

Quando sua filha Selma fez dezoito anos, Formiga teve uma ideia. Havia uma facção comandada por um amigo chamado Portuga, que havia falecido recentemente. Em seu lugar ficara o filho mais velho, Miguel. Se o rapaz topasse se casar com Selma, seria ótimo. Deste modo estabeleceriam uma coligação que os tornaria imbatíveis. Ainda por cima, o Gordo - o suposto mandante da morte de Portuga e principal inimigo de Formiga, não ia se meter a besta de tentar alguma coisa, pois teria dois adversários fortes pela frente.

Em agosto, durante uma reunião entre os chefões aliados, Formiga fez a proposta para Miguel. Ainda desconcertado com a morte do pai, o rapaz aceitou. Marcaram de se encontrar em janeiro, logo após as festas de final de ano para oficializar o pedido. No entanto, o que Miguel não sabia é que o destino ia se meter em seus planos. Ele nunca se envolvera seriamente com nenhuma mulher, contudo, isso ia mudar em breve.

Dois dias após o encontro com Formiga, Miguel foi baleado num confronto com a polícia. Seus cúmplices conseguiram levá-lo para o QG e trataram de chamar uma moça da comunidade para prestar ajuda. Seu nome era Fatinha e era auxiliar de enfermagem. Por sorte, a bala não havia se alojado no ombro, e não foi difícil cuidar do ferimento. Miguel se surpreendeu com a moça bonita que estava séria ao seu lado. Como é que ele não a tinha visto antes! Depois que ela fez o curativo e saiu da fortaleza, Miguel mandou que descobrissem tudo a seu respeito. Em pouco tempo, tinha quase um dossiê completo. Ela mudara para a comunidade havia um ano. Seu pai era carpinteiro e a mãe, diarista, e tinha um irmão menor. Embora Fatinha não fosse crente, nunca havia ido aos bailes funks, e tudo indicava que não tinha namorado. Miguel gostou do que ouviu.

Quando Fatinha voltou no dia seguinte para trocar as bandagens, ganhou rosas. A moça agradeceu meio sem jeito. Na verdade, era a primeira vez que recebia flores na vida, e jamais supôs que quem as daria seria um marginal.

Enquanto fazia o seu serviço, Fatinha fez um retrospecto de tudo. Na véspera, ainda de madrugada, quando bateram na porta de sua casa, e mandaram que se vestisse correndo para atender o chefão, ela foi apavorada. Seus pais ficaram aflitos, mas quem teria peito para enfrentar aqueles caras armados? Ninguém era maluco. Fatinha se deixou vendar e foi rezando pelo caminho enquanto um rapaz a guiava. Ela não sabia da gravidade do ferimento e temia que, se fosse sério, estaria em maus lençóis. Tinha conhecimento de enfermagem, mas havia se formado há pouco tempo, e sua experiência com ferimentos à bala era quase nenhuma. E se o homem morresse em suas mãos? Seria morta? E sua família? Nesse turbilhão de incertezas e pânico, chegou ao local. Ela levara gaze, algodão e esparadrapo. Eles tinham álcool e era tudo com que contava para fazer o seu melhor. Durante todo o tempo que esteve ao lado do homem, mal levantou os olhos, mas deu para perceber que ele era jovem. Embora estivesse com dor, ele não se queixou uma única vez. Foi só Fatinha acabar que ele perguntou quando teria que trocar o curativo, e depois marcou a hora em que a buscariam no dia seguinte. E agora estava aqui e era recepcionada com rosas!

Todavia, dessa vez como já sabia o que ia encontrar, Fatinha estava mais calma e confiante. Ao acabar de fazer o procedimento, agradeceu o presente e ousou olhar para o seu paciente. Era um rapaz bonito que estava ali, e se não soubesse que era um chefe do crime organizado, diria que era um estudante universitário. Ele devia ser muito assediado pelas mulheres, mas ela não estava interessada. Sendo assim, pegou suas coisas, se despediu e foi embora. Quando a moça saiu, Miguel explodiu. Afinal, quem ela pensava que era? Ele fora educado, tentara manter uma conversa e ela mal respondera às suas perguntas. Quantas garotas ali na comunidade estariam dispostas a tudo para estar em seu lugar, e ela o esnobava!

Durante os outros dias, eles mal trocaram algumas palavras, mas Miguel não conseguia tirá-la da cabeça. Foi só o tempo de ficar bom e saber mais detalhes da vida de Fatinha, que ele lhe fez outra surpresa: foi esperá-la na porta do hospital onde trabalhava. Quando ela o viu, ficou tão atordoada que não sabia o que fazer, mas ao mesmo tempo achou que era mera coincidência o fato de ele estar ali. Nunca poderia pensar que era por sua causa. Sendo assim, deu boa noite e já ia andando quando ele a abordou.

- Vim aqui te buscar para dar uma carona, e você me dispensa assim?

- Desculpe...mas não precisa – disse ela. O ponto de ônibus é logo ali adiante.

- Você não vai fazer essa desfeita comigo, vai?

E foi assim que entrou no carro dele. Foram para casa, seguidos de perto pelos seguranças que estavam em outro veículo, dando cobertura.

Durante o trajeto até o morro, Miguel foi falando o tempo todo. Ia aos poucos contando sua vida. Sempre soubera de onde vinha o dinheiro do pai, entretanto, a mãe queria que ele estudasse. Ele chegou até a se formar em administração, porém quando o pai se sentiu ameaçado pelo Gordo, chamou o filho para ajudá-lo. Embora meio a contragosto, Miguel foi se inteirando dos negócios, e quando houve o assassinato, teve que assumir o comando antes que fosse tarde demais.

Enquanto Miguel discorria sobre como entrara para o mundo do crime, Fatinha permanecia em silêncio. Logo que chegaram, ela saltou, agradeceu a carona, e estava prestes a ir embora quando Miguel virou-se para o irmão que o esperava, e disse:

- Júnior, estacione o carro enquanto eu vou levar a moça em casa.

Com essa Fatinha não contava. Ela foi subindo a ladeira, olhando para o chão quase o tempo todo, mas não pôde deixar de notar os olhares que as pessoas lhe dirigiam, principalmente as mulheres. Como a vida tinha suas ironias! Elas morrendo de inveja, e ela querendo que Miguel a esquecesse.

Quando chegaram em frente a casa de Fatinha, ele pegou sua mão e a beijou, depois continuou a subir para a parte mais alta da comunidade. Ela entrou em casa, porém não comentou nada com os pais, pois não queria assustá-los. Depois foi para a cozinha, esquentou o jantar e enquanto comia, pensou em Miguel.

Todo dia ele ia buscar Fatinha na saída do seu turno. Entre as informações que conseguira obter após quase um mês, estava o aniversário dela que seria em breve. Na data, ao saber que ela não programara nada de especial, ele falou:

- Ligue para sua casa e diga que vai chegar mais tarde. Vou levá-la para jantar, mas seus pais não precisam ficar preocupados porque você está comigo.

Fatinha tentou se esquivar do convite, contudo, acabou tendo que telefonar. Sua mãe ficou bastante nervosa, pois já percebera o cerco do chefão em torno de sua menina. Aliás, todo mundo sabia que Miguel estava com os quatro pneus arriados por Fatinha. O pai dela pensara até em se mudar dali, mas a verdade é que não tinham para onde ir.

Apesar de lutar com dificuldades para ajudar os pais, Fatinha era um pouco vaidosa como toda mulher. Foi com alívio que deu graças a Deus por estar usando um vestido novo, presente da madrinha, porque Miguel a levou a um bom restaurante. Ela nunca pensou que seria possível comemorar seu aniversário em um lugar como aquele. Além disso, Miguel estava com roupa de marca e parecia bem à vontade naquele ambiente luxuoso. Ele perguntou o que ela queria comer, mas como ela não sabia o que escolher, ele fez o pedido pelos dois. O jantar transcorreu em perfeita harmonia. Logo depois de decidir a sobremesa, Miguel pediu licença e levantou-se da mesa. Enquanto esperava por ele, Fatinha ficou divagando. É...ela tinha que admitir que nestes últimos tempos ficava de olho no relógio ao final do plantão. E quando entrava no carro de Miguel, já se sentia bem mais à vontade.

Foi só Miguel voltar que o garçom trouxe duas bandejas, uma após a outra, sendo que a segunda estava tampada. Fatinha não entendeu nada, mas achou que aquilo deveria ser comum entre os ricos. Quando acabaram de comer o doce, Miguel levantou a tampa da bandeja. Havia ali uma caixinha e ele a passou para ela. Ao abrir, Fatinha encontrou um par de brincos de ouro em formato de coração. Ela ficou encantada, pois eles eram muito bonitos, porém disse que não podia ficar com eles. Miguel argumentou que ficaria muito magoado com sua recusa, afinal, ele mesmo havia escolhido a joia. Ele havia notado que ela costumava usar bijuterias delicadas, e queria dar uma lembrança que demonstrasse o quanto já estava gostando dela. Diante de tal declaração, o que ela poderia fazer a não ser aceitar? Ela tirou seus brincos e colocou os novos. Fatinha não sabia ao certo se a felicidade que estava sentindo era efeito do vinho que tomara durante a refeição ou se era devido ao clima de romance no ar, mas ela parecia estar nas nuvens. No caminho para casa, tiveram que parar em um sinal fechado. Foi aí que olhou para ele e disse:

- Obrigada.

Ele soltou o cinto de segurança, chegou perto dela e a beijou longamente. Os dois só se tocaram que o semáforo abrira quando ouviram as buzinas dos carros.

Ao chegarem ao morro, ele perguntou se ela queria ficar na casa dos pais ou se queria subir com ele. Fatinha sabia que devia resistir, mas para ser sincera, também já estava apaixonada. E foi a partir daquela noite que se tornou oficialmente primeira-dama.

Miguel estivera tão empenhado em conquistar a mulher da sua vida que esquecera por completo o acordo com Formiga. Em dezembro, ao receber um telefonema do velho, ficou desorientado. Como iria fazer para sair daquele impasse? Empenhara sua palavra, mas agora tudo estava diferente. Sentia-se realizado ao lado de Fatinha, e não estava disposto a abrir mão dela. No entanto, sabia que precisava agir rápido porque Formiga era um homem perigoso, e não ia aceitar ser humilhado sem revidar. Enquanto falavam amenidades, Miguel procurava uma saída. Como não lhe ocorreu nenhuma solução brilhante, decidiu ser sincero e falou a verdade. Ele se desculpou, dizendo que havia se apaixonado e que estava muito feliz. Entretanto, seu irmão era solteiro e desimpedido. Desse modo eles poderiam selar o pacto de amizade entre as duas famílias como haviam combinado. Do outro lado da linha fez-se um silêncio profundo. Depois de algum tempo, Formiga respondeu:

- Não foi bem isso o que acordamos, mas como é seu irmão, vou relevar.

A princípio, Júnior resistira à ideia do casamento, pois era muito novo, porém ao ver fotos da moça no Facebook, achou que o sacrifício valia a pena. Ela era linda!

E foi assim que em janeiro Miguel, Fatinha, Júnior e vários outros integrantes da gangue foram a um almoço na fazenda de um amigo em comum – o Rato.

Ao chegarem, foram recepcionados como reis. O velho parecia estar entusiasmado com o noivado e traçava planos para o casamento do ano. Ele fazia questão que Selma tivesse tudo do bom e do melhor.

À medida que as horas foram passando, Miguel e sua turma começaram a relaxar. Júnior engatara uma conversa sem fim com sua noiva, e eles pareciam estar se divertindo. Em determinado momento, Selma e as mulheres da sua família retiraram-se do cômodo. A moça iria trocar de roupa, para que na volta, Júnior pedisse sua mão em casamento. Todavia, foi só elas saírem que, de repente, as portas e janelas do salão foram fechadas e um tiroteio infernal começou. Ao final de alguns minutos a troca de tiros parou. Alguns capangas de Formiga estavam feridos, mas todos que tinham ido com Miguel, inclusive Fatinha, estavam caídos no chão. Formiga, então, ordenou aos seus homens que se assegurassem que todos os inimigos estivessem mortos. Afinal de contas, ninguém o fazia de palhaço e ficava impune, e isso ainda serviria de exemplo para o próximo espertalhão que tivesse alguma ideia semelhante. Logo em seguida, Formiga deu ordens pelo rádio para que invadissem e tomassem os pontos de venda de Miguel. Sabe como é: rei morto rei posto.

Beth Rangel
Enviado por Beth Rangel em 15/11/2013
Reeditado em 22/08/2015
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