O Bilhete

Dizia estar cansado da leitura. Jogou os livros fora. Quando disseram que seria melhor ter doado à uma biblioteca, disse não se importar. Não tinha seus próprios livros, escrevia e ficava sem nenhuma cópia, jamais ganhou um real em seus livros. Dizem que um deles foi um best-seller acadêmico nacional. Certa vez me disseram que vivia sob uma moral: joga fora tudo que te envergonha. Não sobrou quase nada. Agora estou comprando um de seus livros numa feira cultural, algum sortudo estava no lugar certo na hora certa. Encontrei um pequeno bilhete nesse livro, eis a coisa mais gostosa dos livros esquecidos em sebos e feiras, as coisas guardadas entre suas páginas, o livro lhes serve de mortuária até aparecer alguém para lhe ressuscitar. Comprei o único livro em prosa do professor. O vendedor disse-me com bastante propriedade que aquele livro era um clássico nacional, pois se tratava de uma obra rara. Rara porque o autor jamais escrevia em prosa. – O cara era um intelectual acadêmico que escrevia difícil. Completou o feirante feliz com seus duzentos reais na mão.

Eu gostava de andar pela feira e ver a sua diversidade. Diversidade e liberdade intensas. Chegava a encontrar peças interessantes, mas hoje só pensava no bilhete. O bilhete foi o melhor achado, como uma pérola na ostra. E isso simbolizava muito bem o ostracismo que vivia atualmente o professor. A sua solidão atual contrastava com a época do bilhete. 10 de novembro de 1970. Parecia ter sido um belo ano, uma bela época, ou simplesmente um belo dia. O bilhete revelava um lado do professor tão misterioso que jamais alguém poderia imaginar. Escondido nas dissimulações humanas sempre há uma parte que não podemos captar no cotidiano da convivência, pois se aloja qual vírus no interior de suas entranhas e ali vive encubado até que alguém o arranque de uma página de um livro qualquer. Tinha em minhas mãos esse vírus, o que fazer? Exterminá-lo? Exterminar esse vírus seria mantê-lo ali encubado, escondido dos olhos alheios, escondido de seus amigos e inimigos. Ironicamente, esse vírus caiu na mão de um desconhecido, jamais conheci pessoalmente o professor. Decisão. Sempre estamos tomando decisões, desde as mais simples às mais complexas. E essa era uma das mais complexas que já me deparei.

Naquele dia encontrei a Abigail. Abigail era metida a feminista, mas jamais abriu mão de romances. Era feminista, mas amava os homens. Dizia-me: - Que isso fique entre nós, mas adoro ser submissa aos homens na cama. Ríamos muito. Abigail era uma das simpatizantes da filosofia do professor, mas se eu lhe mostrasse aquele bilhete certamente ocorreriam mudanças. Havia um boato nos tempos de academia que Biga teve um caso com o excêntrico mestre. Não sei se era verdade ou mentira, pois ela não afirmava e nem negava, gostava de manter as coisas suspensas. Gostava de se posar como Beauvoir. Quando me disse de sua tara em ser submissa na cama, achei que seria alguma indireta e fiz-lhe uma proposta que recusou imediatamente, dizendo que eu não era seu tipo. Rimos de novo. Eu vermelho sem graça e ela se divertindo. Não tinha como ter raiva dela com aqueles olhos imensos e aquela gargalhada deliciosa, mantive Abigail em meu coração, já que no sexo fui impedido. E me deleitava com sua presença, suas mãos, seu cheiro e o roçar das pernas involuntários. Era o máximo de relação íntima que ela me permitia, mas já me era suficiente. Em sua presença não precisava dissimular, pois tudo entre nós já estava revelado. Era um estado de profunda liberdade. Despedi-me de Biga e não lhe mostrei nem o livro e nem o bilhete, isso se tornou a única coisa que jamais a revelei.

Sinto um pouco de culpa em tirar da Abigail essa parte do mestre. O livro, eu sabia que havia outras cópias nos sebos, mas o bilhete era único. O bilhete se tornou a grande obra do mestre, pois era algo que jamais fora revelado a alguém. Tenho a impressão que nem mesmo o destinatário chegou a conhecer. Comecei a ler o livro, mas o bilhete sempre aparecia, qual um fantasma, em minha mente durante a leitura e parava. Li e reli inúmeras vezes o bilhete até decorá-lo. Fiz questão de decorá-lo, pois tinha a intenção de queimá-lo. Guardaria suas letras, mas queimaria o papel para não servir de prova a nenhum biógrafo oportunista. Levaria comigo para o túmulo e somente eu e os vermes conheceríamos o seu conteúdo. Talvez um anjo vadio também o conheceria, Naquele Dia.

Jamais soube o destinatário do bilhete, mas sabia que o mais importante naquele bilhete era o remetente. Queimei o bilhete exatamente trinta anos depois de sua data, 10 de novembro de 2000. E hoje ainda me lembro perfeitamente de suas letras. Sete linhas que revelavam um lado completamente diferente do que conhecemos e imaginávamos daquela figura. Voltei a me encontrar com Abigail no enterro do mestre, ela vestia preto e chorava muito. Saímos do cemitério e fomos a uma café. Tentava consolá-la lembrando de algumas coisas divertidas que passamos juntos. Foi um dia triste, muito triste. E quando me despedi de Biga, disse-lhe: - Querida, a vida é uma coleção de momentos inesquecíveis, até mesmo para a alma mais atormentada existe momentos inesquecíveis, as pessoas se vão, mas esses momentos têm a capacidade de serem eternos. Chore, chore até começar a sorrir com a lembrança desses momentos e se deleite com a sua eternidade. Despedi-me de Abigail e a vi se afastando até a última curva da rua, seu andar denunciava tristeza e mal sabia ela que carregava um pouco daquilo que se mantinha oculto do bilhete do mestre.

Rodiney da Silva
Enviado por Rodiney da Silva em 14/10/2013
Código do texto: T4525360
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.