A mulher do vizinho de praia
 
Não era mais pelo prazer da praia que ele descia a serra toda semana, no verão. O mar azul e límpido desde a temporada passada deixara de ser a motivação principal para cair na estrada na sexta-feira, enfurnar-se num balneário sem graça, amassar o barro da rua, deixado pela chuvarada do dia anterior, e vencer os dois quarteirões que levavam ao mar. E, no domingo à tardinha, espantar a preguiça, encher-se de coragem e encarar o movimento da subida de volta para a capital.
 
O mar continuava azul e tranquilo na maior parte do tempo. Dentro dele, entretanto, as ondas agitavam-se e cresciam quando a via do outro lado da rua, organizando e apressando a prole rumo à areia. Uma morenona boazuda, corpo iodado, e possivelmente salgado. Imaginava-se provando o sal da pele bronzeada. Sonhava muitas noites com ela e acordava suando, com uma baita sede.
 
- Com sede de novo, homem! – a mulher reclamava, ao despertar com ele voltando para a cama.
 
- Sonhei que estava lambendo sal. Não tenho culpa. Dá sede.
 
- Esquisitice isso de uns tempos pra cá. Vai ver está com diabetes...
 
Ele falava pois é e tratava de voltar a dormir depressa, na expectativa de que o sonho continuasse. Como  o sonho não continuava, ao acordar de manhã levantava-se e corria abrir a janela da frente. Ansiosamente a procurava no jardim da casa defronte. Muitas vezes batia com os olhos no marido. Disfarçava a decepção acenando bom dia para o homem, que gentilmente respondia gritando que bom temos um domingo ensolarado.
 
Com um pouco de sorte ela aparecia atrás do magrelo. Ele, invejoso, não se referia ao marido dela como o marido da vizinha. Era o magrelo, magricela, baixinho. Embora o homem não fosse nem tão magro nem tão baixo. No entanto, havia que se concordar numa coisa: o físico do marido não era compatível com a escultura da mulher que ele tinha. Ela merecia coisa muito melhor. Eu, por exemplo - ele caraminhola, tentando aqui interferir na minha narrativa. De fato ele era mais alto e mais encorpado que o vizinho, apesar de uma teimosa e crescente barriguinha que aos poucos lhe vinha estragando o porte sobejamente atlético de antes.
 
Então, com a morenaça à vista, ele jogava meio corpo janela afora e com o braço estendido lançava um bom-dia também para ela. O marido ria.
 
Na praia, fazendo companhia para a patroa debaixo do guarda-sol, ele tentava adivinhar qual biquíni ela vestiria. O amarelo? O vermelho, menorzinho? Ou o estampado da moda? Não importa, concluía. Que venha do jeito que vier, mas que venha logo. Meu Deus, que angústia, que ansiedade essa espera!
 
Ela chegava com marido e filhos a tiracolo. As crianças corriam encontrar o mar, o marido fincava o pau do guarda-sol na areia, ela esticava a esteirinha ao sol. Armada a barraca, o homem dava-se à deliciosa tarefa de untar a morena de protetor solar nas partes que as mãos dela não alcançavam. Ele babava ao lado da esposa, que mantinha a cara enfiada no best-seller do momento. E mais uma vez morria de inveja do marido sortudo.
 
Após uma breve tostada ela levantava-se com jeito, arrumava as peças do biquíni sumário e desfilava com graça a caminho da primeira onda, enquanto o marido ia longe procurando conchinhas na areia com as crianças. Ele disfarçava, avisava a mulher que ia dar um mergulho. A mulher resmungava está bem sem tirar os olhos do livro.
 
Mas que mergulho que nada! A mulher do vizinho ali no raso, para que procurar onda grande? Sempre guardava respeitosa distância, até que uma manhã foi vencendo a timidez e o embaraço. Chegando de mansinho, puxou conversa boba.
 
O papo engrenou. Ela gostou dele. Ria das piadinhas, admirava-se com as grandes histórias de pequenas bravatas. Gastaram um tempão jogando conversa fora.
 
Feita a aproximação e quebrado o gelo, passaram a se falar com mais frequência e intimidade. A mulher dele enfiada nos livros, o marido dela brincando com as crianças ou jogando bola com os colegas de areia. Ele e ela em animados convescotes à base de picolé, deixando-se lamber pelas ondas que morriam na praia.
 
Se foi coincidência ou coisa arranjada, eu não sei direito. Mas o fato é que numa temporada, as férias de ambos caíram nas mesmas duas inesquecíveis semanas. Na primeira, nada de novo. Mas na segunda até que enfim ele vislumbrou uma tarde de liberdade total. Ela na casa dela e ele na dele, sozinhos.
 
O marido saíra para pescar em outras paragens com os amigos. As crianças brincavam nas casas de amiguinhos. A mulher dele tinha-se tocado para a cidade.
 
Assim que ele se viu livre e percebeu que ela também, atravessou a rua. A morena na rede, à sombra. Sem cerimônia ele foi entrando.
 
- Estamos sós – ele disse.
 
- Não, estamos nós dois – ela respondeu.
 
Ele estendeu a mão, ela aceitou o auxílio e levantou-se. Sem palavras, como em transe, puxou-o para o quarto nos fundos da casa. Na cama macia preparavam-se para uma viagem proibida.
 
- Amor! A pescaria gorou. O carro do Turco enguiçou aqui perto – gritou o marido entrando na sala.
 
Carrinho sem-vergonha, ele pensou pulando a janela.
 
Acocorou-se rente à parede, para não ser visto, e ficou quietinho, esperando um sinal dela para que pudesse escapar pela frente. Após minutos, longos e sofridos, ouviu a voz do marido no quarto.
 
- Amor! De quem é este calção aqui na cama?
 
Só então ele constatou que estava nu. Na afobação para fugir, esquecera-se de pegar a única peça de roupa que vestia quando havia chegado.
 
- É seu, benhê – ela gritou da sala.
 
- Quando foi que você me viu vestindo calção de veado, cheio de florzinhas?
 
- Não se lembra de que eu comprei para você em Brusque, há duas temporadas? Nunca usou, agora achei no armário, deixei aqui na cama para você vestir – ela disse, entrando no quarto.
 
- Ah, meu amor! Você quer que eu vista isso? Quem usa essas coisas é o vizinho da frente. Não sei não, mas acho que o cara corta dos dois lados.
 
- A moda voltou. É moderno agora. Não reparou na praia?
 
- Enquanto eu penso no assunto, vamos aproveitar a tarde livre sem as crianças e colocar o amorzinho em dia – falou puxando a mulher para a cama.
 
- Já? Com a casa toda aberta?
 
- E daí? Há quanto tempo não fazemos isso à luz do dia, correndo riscos?
 
Antes de ouvir os gemidos que temia ouvir, ele aproveitou para dar o fora, esgueirando-se de quatro junto às paredes até alcançar o portão. Olhou para os dois lados da rua, comprovou o território deserto e, voltando à posição intrínseca aos bípedes, chispou para a casa.
 
No dia seguinte, muito mais ansioso do que nos outros dias, ele esperava por ela molhando os pés na espuma do mar calmo que, só para zombar dele, refletia mais do que nunca o azul do céu. Como ela demorava!
 
Finalmente ela apareceu. Como sempre, cercada do marido e dos filhos.
 
Ele, como sempre, babando. Mas desta vez inconformado pelo que perdera na véspera. E sem saber se haveria outra chance para consumar o ato. Talvez tenha perdido a primeira e derradeira. De volta ao planalto, provavelmente ela não topasse um encontro, fiel ao adágio de que amor de praia não sobe a serra.
 
À frustração da oportunidade perdida somou-se a raiva de ver o marido alegre, correndo com as crianças, metido num moderno calção floreado. Logo aquele, novinho em folha, que ele usara somente uma vez.


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N. do A. – Na ilustração, Mulata na Janela com Pássaro de Di Cavalcanti (Rio de Janeiro, 1897-1976).
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 11/10/2013
Reeditado em 14/11/2020
Código do texto: T4520695
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