Até que a morte nos separe

ATÉ QUE A MORTE NOS SEPARE

De repente, éramos outros.

- Não volto mais lá...

- Aquele homem me persegue...

- Você não entende... É pessoal... Ele não gosta de mim...

Pensei tratar-se de uma crise de meia idade, meia vida... Sei lá, de quem vive à meia boca...

As ausências foram se tornando constantes e a necessidade de justificá-las também. Os primeiros atestados foram entregues com uma satisfação estranha, mas os seguintes passaram a ter um peso maior, a esboçar a vergonha e a arrogância do homem cada vez mais desconhecido.

A crise havia se transformado num dia-a-dia rotineiro. Falávamos sobre os fantasmas do escritório e das psicopatologias citadas nos atestados. Vivíamos à margem da realidade.

Pensei que fosse temporário, mas... Cada dia, ele ficava mais arredio. Distanciou-se de todos e passava o dia escrevendo anotações. Quando cansava, guardava-as no cofre e dizia que um dia ainda valeriam muito dinheiro.

- Medíocres. Homens sem projetos...

- Estou escrevendo sobre tudo o que sei. Um dia se arrependerão. A verdade virá à tona!

- Insignificantes, medíocres... Pensam que preciso daquilo. Emprego é a arma dos fracos...

- Tenho o poder dos projetos!

Ele não queria mais ir ao local de trabalho. Falou que o chefe fazia comentários maliciosos e que os demais funcionários o olhavam com pena ou descaso. Era a sua verdade, mas nós precisávamos do salário, todas as despesas da casa estavam atreladas àquele recebimento mensal.

Deixei que falasse sobre a insignificância e a mediocridade, até acreditei, contudo, ia à repartição toda vez que vencia um atestado. Era necessário demonstrar que o motivo da ausência era de força maior - o esgotamento emocional estava exaurindo a sanidade de meu marido...

Ele reclamava.

- Tantos anos dedicados ao serviço e eles não vêm buscar meus atestados em casa!

- Desaforo!

- Não vá lá! O homenzinho medíocre está me perseguindo. Sei que fala de mim por trás...

- Não dê ouvidos para o que falam de mim...

- Cuidado com o homenzinho!

- Cuidado com os que sentem pena!

Comecei a ir escondida nas tardes de quarta-feira quando ia ao cabeleireiro, passava no escritório, apresentava os atestados ou demonstrava consternação com o estado emocional do meu marido.

- Ele melhorou?

- É um bom funcionário!

- Tem previsão de cura?

- Afinal o que ele tem?

- Podemos visitá-lo...?

Tentava responder as perguntas, mas muitas vezes faltava-me respostas.

Saía intrigada. O quê? Por quê? Como? O escritório permanecia o mesmo enquanto meu lar se transformava num caleidoscópio surpreendente. O ambiente parecia tão bom e todos tão preocupados. Por que de repente tanto sentimento?

Em poucos meses, tornamo-nos estranhos. Como não conseguia entendê-lo, passei a ser o mais discreta possível a fim de não ser mal interpretada.

Muitas vezes, observei-o concentrado, com os olhos fixados em mim com fúria, outras com os olhos largados do mundo...

O salão estava vazio. Pude sentar e ser logo atendida pela Cirlei. Ela era extravagante, queria ser tratada com a mais feminina das mulheres, mas no íntimo sabia que nunca poderia fugir de sua natureza masculina. Ela era um homem sem pênis com uma vagina sem lubrificação.

Dizem que já foi mais apaixonada, viveu muitos romances passionais. Porém, desde que a conheci, ela falava, excessivamente, da beleza do corpo e das particularidades que mulher alguma conseguiria ter e, um pouco, sobre os progressos do filho adolescente nos estudos, mas não falava de conquistas amorosas.

Enquanto ela passava as mãos em movimentos circulares em minha cabeça, descontraí-me, senti quase prazer... Há muito ninguém tocava em meu corpo...

Abandonei-me junto às esquisitices do meu marido. Deixei-me ficar à sombra dos seus fantasmas...

A cabeleireiro percebeu. Talvez tivesse a angústia desenhada na face, talvez fosse intuição de uma alma feminina...

- Não fique assim... Não vale a pena...

- Temos de nos valorizar...

- Digo por experiência própria...

Cirlei falava os lugares comuns que encontramos em cada boca. Sempre tem alguém disposto a compartilhar conosco nossa particularidade.

Libertei uma lágrima. Foi o suficiente para deixar que as palavras expressassem o que até hoje não consegui entender...

- Meu marido está enlouquecendo...

- Rabo-de-saia na certa? Já sabe quem é?

- Não entende! Está enlouquecendo mesmo... Sinto-o cada dia mais distante e não posso fazer nada...

- Interna! Já passei uma situação...

- Não posso. Louco o amo mais... Sinto-me importante.

- Loucura mata!

- Não. Ele apenas escreve seus diários e os esconde...

- Falo por experiência própria. Loucura mata!

- Não tenho medo...

- Uma vez conheci um homem...

Seus olhos encheram d'água. Seus cílios artificiais desmancharam na face desfazendo o rosto maquiado. Calou-se de repente como se atingida por uma cruel lembrança. Respeitei sua dor. Abaixei o rosto para não constrangê-la e permaneci aprisionada no inferno de minhas dúvidas.

- Como depois de tanto tempo? Era um homem tão bom!

Quando já estava saindo, pude ouvi-la sussurrar, ainda com os olhos marejados de dor, olhando com tristeza para sua imagem no espelho:

- Nunca mais poderei amar...

Voltei para casa. Não podia simplesmente ir embora. Toda minha vida estava atrelada àquela rotina. Percebi que não estava preparada para inconstâncias, desejava me acomodar e não pensar tanto.

Quando acordei de madrugada ele estava sentado à beira da cama me olhando. Viu-me despertar e se levantou quieto. Passou três dias acordado sem falar palavra alguma.

Escreveu algumas resmas de papel e quando jogava um escrito no lixo, queimava a folha amassada e jogava as cinzas na lixeira do prédio.

Não sabia o que pensar, mas por segurança fui dormir no quarto de nossa filha. Queria protegê-la de realidades tão inconstantes.

Quando o último atestado estava vencendo, ele se recusou a voltar ao médico. Disse que não justificaria mais suas ausências. O próprio médico era medíocre, sujeitinho insignificante, que ficava tentando compor os próprios defeitos em mentes brilhantes.

Não me restou outra saída. Marquei uma consulta para mim. Já estava contaminada demais com a loucura para me julgar sã.

Contei tudo o que acontecia em casa. As posturas e descomposturas do homem que perdia a razão. Não conseguia encontrar, no passado, traços que justificassem o presente.

Falei da obsessão com a mediocridade, de suas ambições e suspeitas, dos homenzinhos insignificantes... Acabei falando de mim e como me sentia perseguida por sua insônia e seus olhares. Indícios da loucura ou um despertar?

Ele continuou me olhando sem surpresas. Disse-me que os sintomas eram os esperados dentro do diagnóstico.

- Todos somos loucos! Mas alguns desenvolvem...

- Não tem cura, só medicamentos...

- Matar não mata...

- O surto pode motivar a morte...

- Sim, a dele ou a do outro...

- É de repente...

- As famílias não estão preparadas para isso. Não se sinta culpada... Aconteceu...

- A maioria dos casos que tenho conhecimento, desenvolve-se na normalidade. Trabalho fixo, casamento estável, filhos... De repente...

- Não tem cura, só medicamentos...

Montei os blocos. O homem bom que conheci havia construído durante anos o alicerce para sua loucura. Não poderia abandoná-lo, mas tinha de me manter firme como uma porta para a realidade.

- Nosso ponto em comum ainda amadurecia. Como toda adolescente estava com a vida em ruínas, tal qual o pai...

- Será?

- Não podia ser. Era apenas uma adolescente com seus encontros e desencontros.

Compreendi que meu papel era muito maior: tinha de contracenar com meu marido sem criar muito antagonismo e tentar camuflar a insanidade de nossa filha. Afinal, qual exemplo ela seguiria?

Consegui que uma junta médica fosse em casa e aprovasse sua aposentadoria por invalidez. Ele não percebeu o motivo de tantas perguntas. Em seus devaneios deve ter criado um grandioso motivo.

Estava impecavelmente vestido com um terno preto e uma gravata vermelha. Sentado na poltrona, tinha as pernas cruzadas e uma postura afetada. Olhava para os médicos com arrogância, os olhos caídos sobre as pálpebras inferiores e os lábios relaxados com um toque de sarcasmo. Riu algumas vezes e demonstrou sua grandeza em gestos largos. Suas respostas não correspondiam às perguntas, mas não houve questionamento. Por fim, despediu-se de todos desculpando-se por não poder mais dar atenção.

- O tempo urge, os projetos não esperam...

Ele passou a dormir mais. Comecei a colocar o medicamento no feijão. Dopava-o deliberadamente com o consentimento médico.

Ele tirou todas as minhas jóias do cofre para dar espaço aos escritos, aos poucos, tirou-me do quarto para melhor acomodar seus espectros.

Comecei a fugir dos vizinhos, evitava atender telefonemas de amigos... Todos percebiam a loucura e meu calvário.

Olhavam-me como doente. Percebia seus olhares... Falavam de mim por trás.

- Medíocres! Não conseguem entender minha importância.

- Homenzinhos sem importância...

Até o médico começou a me tratar como doente. Queria me medicar com suas drogas. Percebi que havia enlouquecido meu marido com tantos atestados. Deixei de ir ao consultório e de medicá-lo.

Todos eram culpados. Falavam de nós...

- Doutor da ignorância!

- O que sabe esse homenzinho do meu grande papel? Nada! Não sabe nada além do que aprendeu nos bancos de sua faculdade!

- Medíocre!

Libertei-me do mundo. Trancada em casa, observo o mundo nas letras de minhas anotações. Elas sussurram mais do que vivências comuns. Confidenciam-me verdades.

Resgatei meu casamento.

Helena Sut
Enviado por Helena Sut em 16/02/2005
Código do texto: T4518