Raízes Africanas, Solo Gaúcho ( Conto Vencedor do ENART 2013)

João de Deus Vieira Alves

Quando o trem resfolegou na estação, deixando atrás de si , um rastro de fumaça, lágrimas e infância perdida. Quando a retina plasmou a moldura dos campos e o contorno dos cerros. Venâncio acomodou-se no banco de madeira com a trouxa de roupas contra o peito, e lançou a chispa de seu olhar em direção ao futuro.

Anos mais tarde, com os filhos espalhados, esmolando nos sinais, a mulher que morreu cedo, na fila interminável da previdência social. Os lábios grossos ressecados, mal seguram as baganas e o tremor e inchaço são sintomas do trago e fumo.

Não mais o verdor dos campos, cancha reta, jogo de osso, truco, galpão e siesta nos pelegos. Albergue e sopa do pobres. Portas na cara e desprezo. O brilho de outrora, é opaco, a voz roufenha repete a ladainha, e perturba quem espera ônibus no fim-da-linha.

“ Foto, olha a foto, fotooo”

O vento da primavera mostra seus primeiros sinais e as juntas doridas alertam que o mês será chuvoso, ouve que num parque da cidade há grade acampamento, festas e poderá catar latinhas para vender e quem sabe, as sobras da festança lhe sejam alcançadas, para aplacar a fome que é sua parceira “hace tiempos”.

Negro forte, num upa estava no lombo de algum malino, por diversão e farra, garantindo o municio e os vícios , e um chego na zona de meretrício , onde as chinas candongueiras e de pernas grossas amainam o minuano e tornam as noites mais aconchegantes.

Os caminhos são os mesmos, as avenidas largas da indiferença, de cada ser ensimesmado, nos labores da faina diária.

Sob a marquise no meio da cidade que pulsa ao redor, a saudade dói e corrói como ácido, o vento da madrugada uiva em seus ouvidos, batendo de encontro ao rosto aguça os sentidos, máscaras de granito e ferro, luzes frias e insensíveis balouçam, passos ressoam na calçada, risos vagos e ilusórios, seres indefinidos e tristes. A marginalia circula livremente, o racismo salta aos olhos dos homens da justiça e ser negro é crime! A cor da pele o estigmatiza, a chacota e o ridículo doem mais que mil chibatadas ou ferro ardente em brasa. Os bêbados vomitam verdades no rosto da sociedade perplexa, órfãos do destino imploram pão , moedas piedosas caem em suas mãos.

Encolhe-se no fétido cobertor carcomido e cheio de pulgas, mero espectro, onde a noite em pesadelos, cavalga fletes de pelo dourado, com seu aperos de prata brilhantes, carona, lombilho, pelegos e badana, a moda da fronteira, e a voz do bisavô , mansa e pausada, atravessa o oceano e traz a Mama África para acalentar seu sono.

Foram cativos em diversas aldeias, seguindo em fila indiana, presos ao libambo , atados pelo pescoço a outros infelizes, os doentes e insubmissos abandonados ao longo dos caminhos, gargantas abertas para medo aos demais, carregavam sacos com pedras e areia, para aumentar a resistência e o suplicio, como premio por viverem ganhavam ração e fumo e aguardente, eram batizados e obrigados a obedecer e temer um Deus que não era o seu. Mesma cor, falares diferentes, igual destinos, mesma sina, jamais haviam visto o mar, um navio, um homem branco, temiam ser devorados por seres antropófagos na outra margem. Nus, cabelos raspados, quase sem água e comida. Epidemias avassaladoras, jogados ao mar os corpos, de volta aos seios de Yemanjá, quando batia forte o banzo, levando-os a loucura e suicídio.

Cata lixo em meio ao Parque, revirando restos, olha aparvalhado moças e rapazes, pilchados, cheirosos, como se obedecessem a um manual, contrastando com os tradicionais autênticos , sem rédea ou bocal, que chegaram neste lugar e como desbravadores de outrora, conquistaram o espaço, onde foram segregados com seus animais, para hoje após os reconhecimento do poder público e adoção pela grande mídia, virar ponto de referencia.

A noite fria enregela os ossos, carros temáticos desfilam na avenida fronteira ao rio que banha a cidade, aplausos, fotos e turistas.

Os principais jornais noticiam no dia seguinte, estampam manchetes de capa “ DESFILE TEMATICO, NOSSA RIQUEZAS “, encerra a Semana Farroupilha.

Na parte sobre a cultura africana trazendo o Rei Congo e a Rainha Mina, atabaques, Lanceiros Negros, junto ao meio-fio próximo a arquibancada, uma figura imponente com um saco preto na mão, tirador de estopa e vincha na carapinha branca, cata latas, olhos castigados pela luz, molambo eivado de cicatrizes pelo corpo e na alma, moldurando um gaúcho despilchado e pés no chão, esquecido e desprezado, correrá o mundo em contraponto com a beleza do desfile.

No derradeiro estertor, na campa onde repousa, aponta na banca de revista, e entredentes, sentindo a agulhada no peito, num supremos esforço balbucia, na golfada derradeira de sangue:

“ Foto, o..lha, a...fo.tooooo”