Vida intramuros (setembro de 2013)

O que restara do esqueleto de uma barata estava ali, debaixo da janela da sala, havia toda uma semana. Significava que ninguém ali estava muito atento em relação à limpeza do ambiente, pois em cima da mesa da sala, por exemplo, havia uma pilha de caixas de comida de pronta entrega: Eram caixas grandes de pizza, comida chinesa, e de empadinhas.

Tudo se passou no mês quente do verão, em que fazia muito sol e calor, mas dentro do grande apartamento quase vazio de gente fazia frio e o vento que atravessava as venezianas das janelas parecia uivar repetidamente. O responsável por toda a bagunça cochilava deitado no sofá da sala, ao lado do aparelho de televisão ligado com o som abaixado.

O som da tevê estava propositalmente abaixado, pois Ricardo já experimentara no passado problemas com os vizinhos do edifício por conta dos barulhos que fazia e que vinham de seu apartamento. Propositalmente, ainda que tivesse que fazer esforço para interpretar a fala de algum ator ou do programa de notícias, o som permanecia sempre baixo.

O ruído do despertador foi despertando Ricardo pouco a pouco. Tinha o sono pesado, do tipo que às vezes nem mesmo o despertador conseguia acordá-lo. De primeiro, aborrecido com o bip, pôs-se no sofá com a barriga para baixo e com a cabeça debaixo do travesseiro, mas como não parasse de tocar, ele levantou-se de um salto e desligou o aparelho com um tapa certeiro.

O despertador caiu no chão e Ricardo agachou-se para pegá-lo. Depois, caminhando moribundo pelo apartamento vazio foi até o banheiro. Olhou-se no espelho e deu-se um banho ao despejar a água de suas mãos em concha sobre o rosto e sobre o pescoço. A água desceu-lhe pelo peito até os joelhos e depois aos pés.

Bocejou enquanto abaixava a calça de pijamas para urinar. Feito isso, retirou toda a roupa para tomar um banho que o ajudasse a despertar. Entrou debaixo da água fria do chuveiro e, a primeira ação que lhe veio à mente foi gritar. Ao invés disso, entretanto, deu vários pulinhos e ensaiou uma cantoria. Cantou a primeira canção que lhe veio à mente:

“Chove chuva, chove sem parar...” Jorge Ben Jor. Pois, a “chuva” do chuveiro escorria pesada pelo corpo gelado. Gelada era a água do chuveiro e gelado era o corpo que se sacudia todo debaixo dele. Passados cinco minutos fechou a água e saiu do box com cuidado para não inundar todo o banheiro. Tomou às mãos a toalha e enxugou-se todo do lado de fora.

Calçou um par de sandálias que estava ao lado da pia e foi direto para o quarto. Vestiu-se com zelo, usando para isso todo o tempo do mundo. Olhou para o relógio que estava em cima da cômoda do quarto de dormir: Oito horas e trinta da manhã de um sábado. Ricardo pôs jeans, camisa branca de malha e um blazer cáqui. Também calçou um par de tênis escuros.

Dali do quarto foi direto para a cozinha, onde pôs um caneco com água para ferver. Sobre a pia da cozinha, arrumou o coador de café sobre a cafeteira. E três colheres de sopa de café. Abriu a geladeira e retirou de dentro dela a embalagem de pão de forma. Pôs em cima da mesa. Também colocou sobre a mesa um queijo grande e redondo. Tipo Minas.

Ao passar da cozinha para o quarto, Ricardo deu de cara com os restos mortais da barata, toda cercada de formigas que traçavam discretamente na parede um ziguezaguear infinito, do chão ao teto. Ao deparar-se com a barata, sentiu nojo, mas deixou para lá – melhor não mexer na sujeira, limpo que estava de um banho revigorante.

“É a vez do telefone”, pensou. Sentou-se na cabeceira da cama (na qual não dormira aquela noite, desabando exausto em frente ao televisor da sala), e levou a mão até o aparelho. Digitou lentamente, com destreza, o número de telefone da casa de sua namorada. No entanto, após chamar muito ninguém o atendeu. Provavelmente Cristina dormia.

Durante a semana falaram-se várias vezes, sempre através do telefone. Fazia dez dias que não se viam e aquela manhã de sábado vinha sendo esperada já há alguns dias. Iriam juntos à igreja logo cedo, e depois passariam o dia a caminhar pelo parque do centro da cidade. Dar milhos aos pombos e pipoca para os patos do pequeno lago era algo longamente ansiado.

Mas o telefone não atendia e Ricardo tentava novamente, sem obter (uma vez mais) nenhuma resposta do telefone de Cristina. O que fazer? A resposta teria de ser uma única: esperar. Lembrou-se de passar um pouco de água de cheiro e, de repente, perdeu seu olhar no espelho por um momento longo, observando uma pequena espinha no nariz.

“Algo estava errado”, pôs-se a pensar. “A água do café!” Lembrou-se do caneco no fogão e apressou-se do quarto para a cozinha desprezando a espinha do nariz. Uma grande parte da água do caneco evaporara e Ricardo teve então que adicionar mais dois copos cheios, enquanto pacientemente sentava-se na mesinha da cozinha para esperar a nova água ferver.

Fervida a água, coou mansamente o café, que era para não derramar nada sobre a pia ou sobre o chão da cozinha. Servida uma xícara com café e duas colheres pequenas de açúcar, abriu o pacote de pão de pão de forma. Depois abriu a geladeira e pegou um pote de manteiga; colocando o pote sobre a mesa, servindo-se dele com uma faca de mesa.

Ricardo comeu apressadamente dois pães de forma e sorveu duas xícaras de café quentinho. Tinha que voltar ao telefone para falar com Cristina. O quanto mais cedo melhor. A julgar pelas horas, quase nove da manhã, já não conseguiriam pegar a missa das nove e meia. Mas haveria mais tarde outra missa e, o parque (o mais agradável do passeio), estava lá aberto todo o dia.

Terminou o desjejum e apressou-se para o quarto, onde estava o telefone. Teclou atenciosamente os números do telefone da namorada, para não errar nenhum. Fez isso uma vez, duas vezes, fez três vezes e nada de Cristina responder o telefone. De mãos atadas, sem saber o que fazer, foi à sala e recostou a cabeça no sofá onde dormira a noite passada.

Ricardo pôs os pés sobre a mesinha de centro e pôs-se a mexer com o controle remoto da televisão. Passou de canal a canal sem deter-se em nenhum. Ao longe, no mesmo recinto, o ziguezaguear das formigas que devoraram a barata, silenciosamente carregando cada uma um pequeno espólio do animal desprezível. Deteve-se na barata e, suspirando bem fundo, sorriu.

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 30/09/2013
Reeditado em 13/07/2017
Código do texto: T4505017
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