As matadeiras
 
Ele morava só; tinha familiares que o amavam e oportunamente iam visitá-lo.  Não insistissem, -antes de mais nada-, era a resposta para quem o convidasse a sair um pouco de casa e passar alguns dias “diferentes”. Mas entendiam: a maioria das pessoas entende. Algumas por amor, para que tudo seja como ele quer; outros esbravejavam, não compreendiam
como alguém possa, queira, goste, de estar assim, “desse jeito”.
-Eu curto, ora! Não é assim que vocês dizem? EU CURTO! Falava tão alto que os vizinhos vinham ver o que estava acontecendo.
-Um dia não vai poder fazer quase nada e vai precisar, querendo ou não, de uma companhia, disse um dos presentes.
- Já tenho, respondeu. Se vocês ligassem mais e viessem me ver com mais constância saberiam.
- Já tem?  Quem é? Pediu referências? Tem a carta de recomendação? Mandou averiguar o passado? Assinou a Carteira de Trabalho?  As obrigações estão bem definidas?
- Calma, pessoal, é um garoto, uma criança.
- Criança? Vamos sentar todos e resolver isto de uma vez por todas, - Agora! disse alguém.
- Não, NÃO VAMOS, ele pode chegar a qualquer hora e não quero que  ouça nada. Levantou-se, e abrindo a porta, disse: - Voltem outro dia, ele está para chegar , vamos, VAMOS, saiam, SAIAM!
- Se o senhor grita com a criança e fala com ela como faz conosco ela não ficará aqui muito tempo. Vamos sossegados. Até outro dia!
- Até, respondeu. Sentou-se na cadeira e lugar preferido (perto da janela) e voltou a reclamar, criticar, acusar e antipatizar com tudo que o rodeava, menos com o Michel Jota .
- Mas que nome esquisito! -  Ô tio, foi o cantor mais conhecido no mundo, lembra não? Tenho saudade dele..
-  Lembro dele sim, dançava esquisito, mas eu gostava...Saudade? Tome cuidado, Jota, saudade mata. Tem duas coisas que não são doenças, não tem remédio, mas mata. Guarde bem essa verdade: Saudade mata!
- E qual é a outra coisa?
- Tristeza, meu filho, tristeza. As duas parecem um bicho roedor, que vai comendo pelas beiradas e quando a gente vai ver, foi!
- Foi!?
- Sim foi! Já era, acabou, morreu, apagou, perdeu, entendeu?
- E não dá para fazer nada?
- Dá sim; pela saudade, a gente chama pra perto quem partiu; isso se a pessoa quiser e se ainda não morreu. E quando a pessoa volta - se voltar-  porque se ela foi, teve razão; se a pessoa voltar,  aí a tristeza vai embora.
- Então, tio,  a gente tem que ter cuidado com quem a gente gosta muito,  mas muito cuidado mesmo, se não quiser se mordido por esses dois bichos aí...
O velho divagou, ausentou-se, olhou para cima, para o lado do ombro esquerdo, uma lágrima rolou até o peito, ele enxugou com a camiseta, levantou-se da cadeira, entrou e trancou o quarto.
- JOTA!  Me chama às seis!
Esse era o bordão do velho: saudade mata!  E saiu do ar, desconectou; a cabeça virou um bate-e-volta de parque de diversões desgovernado... circuiteou, cores dos fios erradas. Sabe-se lá de quantas pessoas sinto saudade... A quantas magoei, acusei, humilhei, desvalorizei.Quantas mulheres mandei embora de minha vida?  Quantas foram sem que eu mandasse? Será que dissimulei tanto assim?  Mentir, eu minto, mas é para não entrarem na minha vida particular... às vezes acuso  e até já provoquei muito só para conferir  o que diziam...confirmar uma desconfiança, ou quebrar a cara, bobagem minha . Pensava alto. Nada de dormir.  Cadê o sono? A saudade apertava seu peito como um torniquete e a tristeza torcia toalhas sobre sua cabeça descabelada e lustrosa.
Dia amanheceu e Michel Jota entrou na sala vupteando;
_ Tive uma idéia!
– O que foi?
– Eu ouvi o que o senhor dizia, mas não sei para quem... 
– Não é de sua conta, Jota, dizia para mim mesmo. Você não sabe que essa é a melhor conversa que uma pessoa pode ter? consigo mesmo?
– Não, não sabia... Mas vou experimentar. Posso dizer uma coisa, tio?
– Pode, do que se trata? – eu descobri que quando brigo com Magali eu fico mais triste do que ela e descobri também que quando eu penso que ela está mentindo eu é que contei uma mentira para ela. Acho que a gente pensa que a outra pessoa é do jeito que a gente é. Entendeu? 
_ Huummm... Que estrago você fez na minha cabeça agora... Onde aprendeu isto, menino, até parece Carl Jung?
_ não sei quem é esse aí  tio, mas aprendi na vida, com a vida. Você não vive dizendo que eu vou aprender mais na vida do que na escola? Então...
_ Tio! Esta dormindo? Não disse que ia telefonar e pedir sorvete para nós?  
_ Disse?
– disse sim e eu estou com a  matadeira...
_Saudade matadeira? De quem? 
_ Do terreiro de minha casinha no sertão, de bola de gude, de cavalo de pau e do sorvete de abacaxi, Você compra uma caixa só para mim?
_ Compro sim, Jota, e vou fazer mais, vou levar você para ver  seu terreiro, vou lhe dar um saco de bolas de gude, mas cavalo de pau... sei não...Você hoje me ensinou muito mais do que a vida nesses anos que vivi. Vamos lá, vamos matar a saudade antes que ela nos mate
Risos... risos...