O Vieira (junho de 2013)

Uma cachorrinha quase vira-latas era tudo o que tinha por companhia. Vieira morava sozinho tendo unicamente o pequeno animal (um cãozinho quase pequinês) por companhia. Não frequentava os vizinhos e estes não o visitavam também. Morava em um edifício de três andares com as janelas voltadas para o fundo de onde podia avistar o sol se pôr.

Trabalhava em uma repartição pública já havia tanto tempo que não sabia dizer o quanto. Vieira tinha sessenta e sete anos de idade e havia dedicado mais da metade de sua vida ao trabalho administrativo de uma repartição pública. Não frequentou universidade, não fez curso técnico, mas passou no concurso e lá estava por muitas décadas.

Chamavam-no de “O Vieira”. É como se fosse o pai de todos – era o mais velho e o mais sábio no recinto e, de fato, haveria pouca coisa ali que Vieira desconhecesse. Conhecia a fundo sua ocupação e tentava transmitir para os mais novos seus conhecimentos. A todos ele agradava e, em função disto, diziam carinhosamente “O Vieira”.

Gritava alguém com o telefone na mão: “O Vieira tá aí?” Enquanto outro se achegava sorrateiramente na mesinha de trabalho de Vieira, “Seu Vieira, preciso docemente de seus préstimos.” Sabiam todos que Vieira tinha uma pequena cadela (um filhote) em casa e, sempre que lembravam, traziam um brinquedo de Pet Shop (de borracha) para “a fofa do Vieira”.

Pois veio um dia em que Vieira acordou com a cadela doente. Havia vomitado em toda a cozinha e, prostrada no seu cantinho no quartinho de empregada, não dava sinal de querer levantar. Ofereceu-lhe ração e leite, mas foi em vão. Fez sinal com a mão que jogaria o brinquedo de borracha para que ela pegasse, mas não adiantou. Continuou prostrada.

Foi aí que ligou para o trabalho avisando que, devido a um pequeno contratempo, chegaria atrasado aquele dia. O rumor que Vieira se atrasaria correu o escritório de canto a canto, e seus colegas demonstravam perplexidade com tal possibilidade. “Será que o Vieira está bem?” É que, segundo os mais antigos, não se lembravam de um único atraso do Vieira. Nunca.

Folheou a agenda em busca do telefone da Veterinária que vacinava a pequena Susi (sim, o nome da pequena cachorrinha era este). Letras A – B – C – D – E... H! Doutora Hilda – teclou lentamente o telefone da doutora veterinária e falou “Pois não doutora Hilda, posso levá-la agora aí?” “Pois então me aguarde que em uma hora nos falamos.”

Retirado o carro da garagem, pôs a enferma Susi estrategicamente posicionada no banco do carona do carro. Susi parecia triste e, de certa forma, aborrecida. Não lhe chamava a atenção o passeio de carro, não lhe apetecia a visão de pessoas, outros carros, árvores e praças pelo caminho. Estava apática a cachorrinha.

Aproximadamente uma hora depois, como previra Vieira, chegavam ao consultório da Dra. Hilda. Pondo o animalzinho no colo, caminhou até a campainha e esperou por alguém que atendesse a porta. A própria Dra. Hilda os atendeu e, gesticulando com os braços abertos, convidou os dois a entrar.

A veterinária tomou de pronto a temperatura do pequeno animal. Nada de errado com sua temperatura. Depois fez um teste para verificar se estava desidratada e a resposta foi clara: sim, Susi estava desidratada. Mas, por que motivo estaria desidratada? Vieira lembrou que não vinha comendo bem ultimamente. Deixava sempre uma porção pequena da ração.

O tratamento não poderia ser outro: Dra. Hilda pôs, imediatamente, a cadelinha no soro. Não haveria piora no quadro de Susi depois da hidratação mas, por precaução, receitou-lhe um complexo vitamínico pois a pequena parecia também um pouco anêmica – razão por estar rejeitando a comida. Vieira no momento deixaria a cadelinha ali e voltava à tarde.

Despediram-se e Vieira foi para o carro. Com a cadelinha Susi nas mãos da veterinária, sentia-se mais tranquilo. Agora ia para o trabalho e, depois do expediente, voltaria ao consultório para pegá-la. Deu partida no veículo e abriu uma das janelas. Ligou o rádio e olhou para o relógio: onze horas da manhã. Sabia que chegaria atrasado.

Mais cedo, quando ligou para o trabalho – por volta das nove horas, começo de expediente – não imaginava que se atrasaria tanto. Era o costume, era o trabalho, não se atrasava nunca. Mas o motivo era nobre, ele um homem sério, e seus superiores muito condescendentes. Ligou do celular para a repartição para dizer que já estava a caminho.

A repartição ainda era um burburinho só: “O que será que aconteceu ao Vieira?” “Algo muito grave deve ter acontecido, será?” Disse alguém que ele estava doente. Outra pessoa apostava que havia sofrido um assalto. Ficou a cargo da estagiária perguntar-lhe, assim que entrasse na sala, o que de fato havia ocorrido. Por esse motivo, estava sentindo-se especial, preciosa.

Vieira estacionou o carro na garagem do edifício onde trabalhava e, logo, tomou o elevador. Eram onze andares. Chegando à repartição, todos os colegas olhavam-no espantados, mas sem dizer nenhuma palavra. O silêncio, na grande sala da repartição, reinava de canto a canto. Apenas a estagiária deu um passo à frente e, nervosa, disse, “O senhor sente-se melhor?”.

Foi aí que Vieira aproveitou a deixa para contar em voz alta, para que todos ouvissem o que ocorrera aquela manhã à cachorrinha Susi – conhecida de todos no trabalho. Falou e dissertou, sem poupar a todos nenhum pequeno detalhe. Achava que o caso estava bem encaminhado, mas não deixava de ser um caso sério, caso de doença grave de cachorro.

Uma voz tímida no fundo murmurou alto, “Estamos todos com o Vieira”. Ao que completaram algumas vozes alvoroçadas, “O Vieira é bom companheiro... Ninguém pode negar!” Depois, aplaudiram todos. A novata adiantou sua opinião: “Ela está é com dor de barriga, vais ver só! Lá em casa tem uma gata que quase morreu de dor de barriga, mas se curou.”

A voz do fundo continuou a partir do que disse a novata, “Tive uma gatinha que quase morreu porque engoliu um carretel de linha. Por sorte, vomitou um bolo de linha de costura e logo se recuperou. Tenho certeza de que o caso da Susi é o mesmo, vais ver só!” Vieira foi até sua mesinha e, abrindo o computador em uma página de planilhas, começou seu dia de trabalho.

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 25/06/2013
Reeditado em 13/07/2017
Código do texto: T4357013
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