O dia em que padre Gregório morreu (abril de 2013)

Na manhã daquele domingo não houve sinos, não houve festa, não houve missa. Padre Gregório morreu. Era final de verão e chovia muito. As pessoas desfilavam pelas ruas munidas de seus guarda-chuvas grandes e de galochas de várias cores. Eu, pequeno que era (tinha dez anos de idade), lembro que trajava um suéter surrado, calças de algodão e galochas amarelas.

Não compreendia o alvoroço das pessoas àquela hora (logo após o café da manhã), falando alto sobre um assunto que, para minha pouca idade, pude deduzir sabiamente que se tratava de morte. Mamãe me arrastava pelo braço até a escola, mas, depois de umas palavras trocadas com duas beatas de plantão, se deteve por um instante. Estava perplexa.

Asseguraram à minha mãe que não haveria aula aquele dia, em memória do falecimento do padre Gregório. O encontro do corpo do padre deu-se assim: uma beata – acostumada a despertá-lo às cinco horas da manhã para prepararem-se para o terço matinal – achou padre Gregório de bruços com o braço dobrado sobre a nuca.

Assim que o viu, não houve porquê pensar que ocorria algo errado. Primeiro o chamou pelo nome, mansamente, ao que não respondeu. Depois resolveu cutucá-lo no ombro e nada de acordá-lo. Por fim, envolveu o padre com o braço em torno do pescoço e virou o corpo. Depois, pôs seu ouvido próximo ao coração e nada. Também já não mais respirava.

“Padre Gregório morreu!”, “Padre Gregório morreu!” Berrou a beata Angelina por toda casa paroquial. No caminho da capela, encontrou a beata Abigail, a quem fez questão de contar todo o acontecido, em mínimos detalhes. Foi aí que decidiram as duas contar o ocorrido ao médico da pequena cidade de Parahy, para certificarem-se do óbito do sacerdote.

No caminho da igreja até a casa do médico pararam toda a gente que encontravam pela rua. E narravam tim-tim por tim-tim a aventura de encontrar o padre morto de bruços em seu quarto. Para atravessar duas ruas – o espaço necessário para cruzar a cidade até a casa do médico – devem ter demorado pelo menos quarenta minutos por conta das narrativas.

Passava-se das seis e meia da manhã quando tocaram a campainha da casa do Dr. Geraldo. De pronto, talvez por desconfiança, ninguém lá dentro se mexeu. Tudo era silêncio. Mas, como insistissem na campainha as duas beatas, alguém logo se deu conta da possível gravidade da situação (algum acidentado, assunto grave... nada se saberia se não atendessem a porta).

Pôs a cabeça na janela o Dr. Geraldo: “O que é a esta hora da manhã? Espero que seja assunto que valha despertar-me tão cedo.” As duas beatas dispensavam apresentação, uma vez que todo o mundo da cidade conhecia Angelina e Abigail. Responderam juntas as duas: “O padre Gregório morreu!” e completaram, “precisamos do senhor para verificar se isto é certo."

Dr. Gregório pediu que aguardassem, enquanto se vestia, e fechou a janela. Rápido, em dez minutos já abria o portão de ferro da frente da casa e oferecia um cafezinho às duas amigas – o que negaram, mas agradeceram com muita educação. “ficamos agradecidas pelo cafezinho, mas precisamos saber do nosso padre Gregório, se não se importa.”

Dr. Geraldo franziu o cenho dando a devida gravidade ao caso. A seu pedido, Angelina narrou todo o ocorrido desde o momento em que fora acordar (como de costume), o padre. Narrou com muito gosto todo o acontecido, mas desta vez sem parar em um só lugar. Narrou toda a história enquanto seguiam a passos largos para a casa paroquial.

Chegando à porta do quarto de padre Gregório, Abigail sugeriu a Angelina que esperassem do lado de fora da casa, na rua, deixando o Dr. Geraldo sozinho para que pudesse fazer o seu trabalho. Angelina concordou e, acho que foi neste instante que as beatas encontraram com minha mãe que me arrastava para a escola. Mamãe ficou perplexa, como eu já disse.

Voltamos enfim para casa, para meu júbilo total. Um dia inteiro sem ir à escola era um dia inteiro brincando na vizinhança ou um dia inteiro jogando videogame. Mamãe, ainda abobalhada, ligou o rádio na emissora local. Para ela, ingenuamente, dariam a notícia do óbito do padre. Era muito cedo ainda, talvez em uma hora ou duas... Mas não agora, dona Alzira!

Voltando à casa paroquial, lá estava o Dr. Geraldo. Saiu à rua em direção das duas beatas com o corpo curvado, cenho franzido e meneando a cabeça. Disse “foi fulminante, digo... um enfarte... por volta das duas horas da madrugada. É uma pena, sendo um homem tão novo. Mas não se preocupem, porque nada poderia ser feito.”

Padre Gregório chegou de uma paróquia distante, no extremo norte do Brasil. Veio de Manaus, a pedido do bispo da diocese de lá, chegando a exatos dez anos em Parahy, Minas Gerais. Quando chegou à hoje pobre Parahy (um dia rica cidade do ciclo do ouro de Minas Gerais), tinha um pouco mais que vinte anos. Morreu muito novo, aos trinta.

Finalmente às sete anunciou a rádio, “Faleceu esta manhã o padre Gregório. O prefeito decretou luto oficial na cidade. Não vão abrir hoje as escolas, o cartório, a biblioteca e a prefeitura.” Minha mãe mirava os azulejos da cozinha (onde estava o rádio), como se visse através deles. Eu tive que me manter bem quietinho para não rir da situação e apanhar.

E continuava a rádio, “O velório será aberto a todos na igreja de Santa Clara à partir do meio-dia. O enterro está programado para amanhã em um horário ainda a ser divulgado. Fique conosco e acompanhe o que acontece na nossa cidade.” Minha mãe apontou para mim com seu nariz muito afilado: Ai de mim se não a obedecesse... Mas procurava ser doce comigo.

Eu pensava, “Será que um sujeito assim não tem família? Não teria mãe, irmãos, primos... pereceu ali, estupidamente sozinho e de madrugada, longe do local onde nascera e longe de qualquer familiar seu.” Já minha mãe pensava na roupa que usaríamos no velório e no enterro de padre Gregório. Queria tudo lustroso, brilhante: do mocassim ao gel no meu cabelo.

Ainda chovia muito. De galochas, ajoelhado em um sofá da sala de minha casa, era com tristeza que via meus planos de brincar na vizinhança irem por água abaixo. Via tudo pela janela: a cidade iria toda preparar-se para o velório e para o funeral do religioso. E nada de videogame hoje. Lembrou-me mamãe: “Luizinho, ao banho agora e vista sua roupa mais nova.”

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 02/05/2013
Reeditado em 13/07/2017
Código do texto: T4271023
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