Lucidez (fevereiro de 2013)

Sou cego de nascença. Tenho vinte e quatro anos recém-completados e me chamo Lúcio. Não me casei porque não quis. Rompi com o compromisso de um noivado de dois anos porque não acreditava que poderia ser feliz com o casamento. Desde então (isso já faz três anos), não tenho me sentido solitário, em companhia de minha mãe e de um cãozinho de estimação.

Minha mãe chama-se Tereza e meu cãozinho chama-se Fiel. Moramos todos em uma casa de dois quartos na periferia da cidade. Fiel passa os dias transitando entre o quintal da casa e seu lugarzinho cativo sobre uma grande almofada na sala de TV. Qual a raça de Fiel? É um cachorro grande,resultado de uma mistura entre fila brasileiro com uma mãe vira-latas.

Como sei tantas coisas sendo cego? O que não posso entender através da visão que me falta foi-me contado por minha mãe ou um amigo. Foi assim que compreendi qual seria a estirpe de Fiel: ele é o fruto de uma mistura selvagem de sua mãe com um cão de raça. No mais, por hora, tenho a certeza de que é muito dócil e adora comer – talvez como a maioria dos cães.

Não há lugar para surpresa no que diga respeito a Fiel: por mais que o treinemos, que tentemos educá-lo para servir-me como guia em minhas caminhadas pela cidade, de nada adiantou o trabalho. Fiel é um cãozinho “bon vivant”, pois vive para comer e lamber as solas de meus sapatos. Não serve para o trabalho com cegos – o que muito lamento.

Mamãe quis convencer-me a doar Fiel para alguma família – em troca adotaríamos outro cãozinho – que treinaríamos para ver se ele daria para o trabalho comigo. Mas não quis. Não saberia viver com a culpa de haver doado Fiel para outra família, que talvez o maltratasse, que talvez não o alimentasse. Sou muito apegado a Fiel, e minha mãe que compreendesse isso.

Mamãe está sempre em casa, desde que se aposentou na fábrica de sombrinhas. Trabalhou arduamente por mais de trinta anos no mesmo local e agora seria, enfim, momento de descansar. Por conta de minhas necessidades especiais, hoje mamãe está mais presente em minha vida. Não que antes ela não estivesse, mas é que agora era diferente: conversávamos!

Durante muitos anos, em todos aqueles em que via minha mãe em casa apenas à noitinha – sim, minha mãe trabalhava exaustivamente por dois turnos diários na fábrica – eu tinha como companhia Fiel e uma empregada. No que diz respeito à minha companhia não canina, foram muitas as empregadas, a cada dois anos havia nova companhia para amarrar meus sapatos.

Sim, enquanto crescia – como disse antes, sou cego de nascença – tive muitas empregadas que me auxiliavam nas tarefas mais banais, assim como amarrar os cadarços de meus sapatos; o que aprendi a fazer eu mesmo a partir de meu décimo aniversário. Foram elas: Regina, Marluce, Maria Benedita, Maria Clara... Antônia, e Rosa.

Tarefas como pentear os cabelos foram conquistas que fui aprendendo aos poucos. Reconheço que se não fossem as companheiras não sei o que seria de mim de frente a um espelho. Penteavam-me pacientemente até que eu fosse tomando gosto pela tarefa e, finalmente aos doze anos de idade, passei a pentear-me sozinho.

Agora que tenho mamãe em tempo integral em casa, como disse antes, conversávamos! Quando rompi o noivado com Gabriela mamãe foi a primeira pessoa a aceitar essa notícia. Mamãe foi a primeira pessoa a compreender minha decisão e aceitá-la – ainda antes de eu ter comunicado minha decisão à minha noiva Gabriela.

Normalmente, mamãe procurava ser imparcial em relação à minha vida pessoal. Fosse o que fosse, furtava-se de qualquer palavra que pudesse me influenciar para este ou aquele lado. Mas, quando comuniquei a ela que iria romper com o noivado, me deu um abraço apertado e disse que eu estava para fazer uma boa coisa para o meu futuro.

Para minha mãe, o relacionamento com Gabriela não era duradouro. Tinha olhos clínicos para encontrar um desamor, ou encontrar uma razão para interromper um relacionamento, e foi assim que me comunicou sua opinião: “Lúcio, termine com esta menina o quanto antes lhe for possível, porque ela não te ama.” E assim, balizado pela opinião de mamãe,terminei o noivado.

Por que será que estou me lembrando de Gabriela nesse fevereiro quente do ano de 2013? Sim, já disse que faz três anos desde que nós dois terminamos, mas esqueci de dizer que em fevereiro deste ano (no dia dezenove), completaríamos cinco anos de noivado. Acordei hoje empapado pelo calor deste verão impiedoso lembrando-me de Gabriela.

Fiel gostava muito de Gabriela. Era capaz de pressenti-la chegando ao portão de entrada da casa (acredite, cachorros são capazes disso); e corria para lá latindo e babando muito. Sabíamos (eu e mamãe), que Gabriela aproximava-se pela festinha de latidos e a baba descontrolada de Fiel.

Gabriela também gostava muito do nosso cãozinho. Trazia sempre no bolso algum biscoitinho canino ou outra iguaria canina; o que oferecia prontamente no portão de entrada ao nosso animalzinho festeiro. Acho que em nossa casa Fiel foi a criatura que mais sentiu a falta de Gabriela. Poderia jurar que nosso cachorro entrara em depressão.

Em breve, interrompo esta narrativa para ir com mamãe e Fiel ao veterinário. Não faz bem duas semanas encontramos Fiel totalmente infestado de carrapatos. Aplicamos duas doses de medicamentos tópicos, mas foi em vão. Agora, confiamos em um profissional para dar uma olhada nele e prescrever (se necessário), um medicamento mais eficaz.

Ultimamente, sinto Fiel muito contente. Creio que, assim como eu, superou a crise de ausência de Gabriela. Segundo mamãe, já não fica parado à sua espera em frente ao portão e, embora infestado por carrapatos, não apresenta incômodo nenhum. Verdade que mamãe o encontra frequentemente se coçando contra o muro – os insetos o incomodam, mas nada mais que isso.

Neste instante, sinto Fiel se aproximar e, com as mãos, pego sua coleira que traz pendurada na boca. Meu cãozinho sabe que vai passear, logo o sei. Também mamãe se aproxima, sinto sua presença pelo perfume agradável, uma lavanda. É hora de partir. Levanto-me com o auxílio da bengala e ponho de lado o papel e a caneta. Mamãe dá-me a mão e me ajuda até o portão.

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 26/02/2013
Código do texto: T4161413
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.