ESTRELAS DO DIA

Outro dia, voltava do trabalho, e uma lembrança descalça, franzina, de vestido de chita invadiu o vidro do meu carro. O sinal fechou no exato momento em que ela corria agilmente atrás da pipa, e o vento impiedoso a tornar aquela busca cada vez mais dolorosa. Perdeu-se no primeiro beco que encontrara para cortar caminho e abordar o brinquedo de surpresa mais à frente. Aquela menina a correr com toda energia que eu também tinha na infância preparou-me um coquetel de saudades, alegrias, recordações e eu bebi.

A imagem empurrada pelo mesmo vento que levava ao longe aquela pipa, transportou-me a meus tempos de moleca. Já não mais dirigia o carro, mas minhas frágeis pernas; já não tinha esses olhos secos, mas com um brilho que não cabia em mim, a correr atrás da minha primeira pipa. Tinha oito anos, quando consegui a façanha, esta caiu no quintal de minha casa e corri como se tivesse caído do outro lado do mundo, corri para abraçá-la antes que meu irmão mais velho a alcançasse. Consegui pegá-la, uma emoção que quase destruiu o objeto amado, pois minhas mãos distônicas e a força com que a abracei poderiam ter sido fatais à sua existência. O concorrente da minha casa tentou inutilmente impor sua autoridade de “menino-homem-mais velho” da família, merecedor legal daquele objeto convencionalmente masculino – em vão. Não esperei sequer a intervenção de minha mãe, que certamente seria a favor do reclamante: “pipa não é coisa de menina”, ouvi muito vagamente. Corri pra rua, com o retrós de linha que consegui pegar da máquina de costura de minha avó e fui voar.

As pernas pulavam as barreiras acidentais e naturais, em busca do vento que desse vida àquele brinquedo mágico. Vento que nunca soprou a meu favor, mas desistências nunca fez parte do meu currículo, num descuido do vento, eu elevava minha pipa às nuvens.

Pena que pipa, com linha de costura, tem vida curta, e o meu desejo de Ícaro levou minha primeira pipa em poucos segundos, pois esqueci que o retrós não tinha a linha amarrada na ponta final, e parada, vi o objeto do meu desejo escapar de minhas mãos, o choque foi tão grande que não consegui correr atrás dela. Fiquei inerte, a observá-la, até perdê-la no meu olhar, contemplando o seu bailar que desviava das mãos ambiciosas dos meninos das ruas por onde passava... voou voou voou. Eu sofria como uma mãe que não sabe o paradeiro do filho. Atormentava-me a ideia de que ela poderia estar perdida em algum fio, árvore, ser destruída pela chuva. E chorava cada vez mais.

Cheguei em casa desesperada, minha mãe, que estava chateada pela fuga e pelo furto da linha (denunciado cruelmente pelo meu irmão), ao ver-me em prantos, esqueceu a raiva. Bendito seja o coração de mãe. Colocou-me no colo, olhou o meu corpo a procura de algum machucado, mas este estava escondido dentro de mim e doía tanto. Quando me acalmei e consegui falar que perdera minha primeira pipa por um descuido fatal, com narração detalhada tão própria de criança, ela olhou para mim e disse as mais belas e apropriadas palavras para aquele momento fúnebre:

“_ Ninguém pegou, nem nada destruirá sua pipa, não chore, ela foi para o céu, é o seu primeiro presente pra Deus.”

Na minha inocência de criança, eu acreditei. Aquelas palavras serviram de lenço ao meu coração e me senti especial por ter dado um presente a Deus. E se ele fosse bacana poderia guardá-la para, bem mais tarde, quando eu morresse, pudesse reencontrá-la e empinar-la no céu.

Essa ideia de presentear alguém tão famoso, deixou-me envaidecida.

Aprendi a fazer pipas, as esculpia (era essa a sensação: de artista que esculpe) com tanto amor, tanta delicadeza, tanta perfeição, para Deus. Não demorou para que o bailado especial que elas faziam no palco azul atraísse compradores. E o céu do meu bairro ficou enfeitado por minhas mãos. Às três da tarde, quando todas tinham sido vendidas, eu subia no telhado da casa e passava horas a contemplar essa tela pintada por mim. Para mim, minhas pipas eram as estrelas do dia, um colorido que brilhava em minha alma. E toda vez que uma escapava... lá ia mais um presente pra Deus.