UM OLHAR NO PASSADO: A tarde era fria naquele principio de outono de um ano qualquer do século passado, faziam apenas doze anos que entráramos no século vinte e um. Tudo parecia repetir-se no tempo que embora passando célere não trouxesse grandes novidades em termos das relações entre os povos. A todo o momento uma nova guerra pipocava aqui ou ali em nome de varias razões ou quem sabe de nenhuma razão, pois a guerra é apenas a não racionalidade do ser humano potencializado pelos fanatismos, fundamentalismos e todos os ismos da irracionalidade que parece que o homem carrega através dos séculos como um carma eterno. Mas tudo começara como dizia naquela tarde de outono já tão distante quase perdida num tempo de lembranças que carregava comigo apesar da dor que ainda causava ao rememorar os acontecimentos daquela época. Angélica estava ali naquela morgue fria, a palidez do seu rosto sem vida não demostrava o sofrimento que houvera passado nas horas que antecederam o desenlace final. A tensão pairava no ar, a Cinelândia estava repleta naquele fim de tarde as palavras de ordem repetidas davam o tom da disposição daquela horda de jovens sonhadores e dispostos a enfrentar batalhas por seus ideais e liberdades. Eram anos duros à ditadura endurecia cada vez mais seus métodos de repressão. Mas ali naquele momento não havia sinal de medos naqueles rostos ainda em sua maioria imberbes e nem nas poucas meninas participantes dos movimentos estudantis que eram o grito sufocado das maiorias populares reprimidas e amordaçadas. Éramos na realidade a linha de frente da luta por liberdade. A cavalaria fez sua primeira investida, todos corremos em direção as ruas estreitas do entorno da Cinelândia para dificultarmos o avanço dos cavalarianos que brandiam suas espadas longas, das mochilas tiramos nossas armas de defesa para enfrentarmos a fúria dos meganhas; (bolinhas de gude), que arremessávamos em direção as patas dos pobres cavalos que desabavam com seus cavalheiros atônitos muitas vezes feridos gravemente, isto me doía, pois nem montaria e nem seus condutores eram na realidade os responsáveis por tanta violência, mas sim seus comandantes tutores da nova ordem estabelecida desde sessenta e quatro com a quebra da ordem democrática. Assim vivíamos aqueles dias ditos de chumbo, onde a vida não valia muito, pois era só o começo de repressões maiores. Depois das escaramuças que se tornavam diárias, nos reuníamos em algum bar do largo do Machado para fazermos as avaliações das nossas perdas em termos de prisões e feridos; aquilo que começara como protestos de certa forma romântico e inconsequente começaram a tomar forma de verdadeiras batalhas campais com feridos dos dois lados, por pura sorte ainda não havia acontecido nenhuma morte, mas tudo levava o desfecho para esse lado, pois a truculência das forças repressivas e nossa reação era um indicativo de acontecimentos trágicos. O que aconteceu naquela tarde fatídica deixou-me arrasado por um longo tempo, pois a realidade acertara-me naquilo que me era mais caro. Angélica! Mais do que até mesmo os motivos políticos e idealísticos da minha juventude sonhadora e revolucionaria aquela menina cheia de ideias transformistas e generosas em relação aos despossuídos não só de bens materiais, mas principalmente de conhecimentos dos seus direitos básicos de cidadãos era para mim e para todos que conviviam com ela a inspiração e razão para que acreditássemos na luta que travávamos contra forças poderosas e cruéis que dominavam o cenário do nosso pais e do mundo bi polarizado daquele momento histórico onde o capitalismo selvagem e reacionário se digladiava com as forças populares e proletárias em todas as partes do mundo mais em especial nos países do terceiro mundo onde os coniventes pátrios eram mais realistas que os lideres fascistas do mundo rico e dominante. Angélica não era fisicamente o protótipo de uma guerreira, pois sua aparente fragilidade e meiguice a fazia mais parecida com uma doce normalista cantada em uma música do Nelson Gonçalves em homenagem as estudantes de cursos de professoras da época. Magra, esguia, não muito alta, dona de uma voz suave porem forte e penetrante que se fazia ouvir por todos em silencio respeitoso quando começava a discursar sobra às injustiças sociais e desmandos do poder constituído; nascera para a tribuna, para a liderança, articulada nas palavras, quando falava seus argumentos penetravam no intimo dos mais descrentes, cínicos e até mesmos dos contrários as suas ideias. Mas o que mais impressionava em sua aparência era o seu olhar penetrante que desnudava a alma daqueles que por ventura se atrevessem a desafia-la, calando-os com um simples olhar não de ódio ou de desafio, mas sim com um olhar de bondade e compreensão como a apiedar-se de suas ignorâncias e desconhecimento em relação aos seres humanos por quem ela dedicara-se a lutar e defender pondo em risco sua segurança pessoal e a própria vida. Sua origem dizia os que a conheciam mais intimamente era de uma família mineira de classe média alta; o que lhe proporcionara bons colégios até a chegada a faculdade de filosofia da UFRJ, uma leitora compulssiva, devorara todos os clássicos da literatura universal assim como os tratados políticos dos humanistas e sociólogos e filósofos conhecidos da época. Seus conhecimentos não eram apenas didáticos, mas sua vivencia nas comunidades carentes desde que se estabelecera no Rio de Janeiro fizeram-na uma pessoa rica em conhecimentos humanos que a colocava a frente do seu tempo a destacando como uma jovem humanista da mais alta qualidade. Mas a tragédia anunciada esta preste a se cumprir, naquele dia fatídico havíamos nos reunidos na candelária e dai partiríamos rumo a Cinelândia em mais um protesto contra a ditadura, éramos uns milhares e ao adentrarmos a Av. Rio Branco encontramos surpreendentemente a avenida livre de veículos e só das janelas dos prédios de escritórios é que havia pessoas a abanar e jogar papeis picados em sinal de apoio a nossa manifestação. Mas aquela calmaria durou pouco, nas proximidades do teatro municipal as tropas da repressão haviam se posicionado para nos impedir o acesso à câmara dos vereadores onde iriamos promover o ato final do protesto em dircursos contra o regime de força, tentando com isso levarmos ao povo nossas ideias e motivos de nossa luta que na realidade era por toda aquela população que havia perdido as liberdades e seus direitos mais básicos de cidadania e dignidade. Mas aquele dia parece que as forças da ditadura não estavam dispostas a enfrentamentos apenas dissuasivos, pois a cavalaria da PM não apareceu e em seu lugar começaram a surgir os tanques de guerra acompanhados de paraquedista do exercito, as tropas começaram a avançar em nossa direção o que nos fez recuar em direção ao largo da carioca, mas lá já havia outros militares em formação de combate, além dos policias a paisana do DOPS e de todos os órgãos responsáveis pela repressão. Para resumir nos estávamos totalmente cercados e não era possível nenhuma resistência e a ordem dos lideres do movimento foi para que nos sentássemos ao chão e não opuséssemos reação alguma; foi o que aconteceu. Éramos mais de quatrocentos presos naquele espaço reduzido do pátio da policia central, até aquele momento nada nos era comunicado e a sensação de insegurança e medo pairava estampada em cada rosto dos detidos, havia entre-nos vários feridos, pois apesar da nossa rendição pacifica os agentes principalmente os do DOSP usaram de toda truculência que lhes era peculiar na hora de nos jogarem nos camburões e nos ônibus de presos conhecidos como coração de mãe; (onde sempre cabe mais um). O pátio interno da policia central era sem cobertura e para nossa desgraça ser maior fazia frio e chovia a cântaros, e assim passamos a noite ao relento amontoados igual gado a caminho do matadouro. Pela manhã as tropas se posicionaram nas janelas do velho prédio de tantas historias de terror da era Vargas e seu chefe de policia Felinto Mullher o mesmo que enviou Olga Benário a corajosa mulher de Prestes para as garras dos nazistas onde sofreu até a morte nos campos de extermínio da Alemanha Nazista. Esta citação e apenas para lembrar que em varias épocas as forças retrógadas se apoderam do estado e fazem todas as barbaridades possíveis por henês motivos principalmente para a manutenção do poder nas mãos de grupos que se locupletam com as benesses destes momentos onde impera os desmandos, corrupção, trafico de interesses e toda sorte de vilania capaz de serem cometidas pelos senhores governantes que se julgam acima do bem e do mal. A triagem dos presos começara, e foi neste momento que o medo bateu, pois enquanto continuamos juntos mesmo em situação de perigo ou no calor das refregas de rua contra a policia não a tempo de pensar e sim em apenas sobreviver e neste estado o medo não se manifesta. A partir do momento que começa o nosso isolamento toda nossa fragilidade se revela e por mais preparado que estejamos para manter a cabeça racionalizando os acontecimentos a momentos em que fraquejamos e se não formos fortes o suficiente, sucumbimos diante da truculência dos algozes. Angélica havia sido separada do nosso grupo naquela manhã, e por vários dias não soubemos mais noticias dela. Eu havia sido levado para uma cela com mais uns dez companheiros e embora fosse um ativista dos mais participativos não era da liderança e estava ali como apenas mais um manifestante e o perigo que corria era apenas de tomar umas cassetadas e depois ser solto e aconselhado a não me meter mais em confusões politicas, o que na realidade aconteceu após uma semana de muita fome e incerteza quanto ao que realmente iria acontecer comigo. O momento critico havia passado, depois do rescaldo era hora de nos organizarmos outra vez, alguns dos nossos moravam no subúrbio da zona norte e para nossa segurança resolvemos mudar os nossos encontros da zona sul já tão visada pelas forças repressivas, para o subúrbio onde poderíamos nos misturar aos trabalhadores e sermos menos notados. Nosso grupo havia sofrido baixas significativas em sua liderança, vários companheiros estavam presos ou desaparecidos e cabia a nos ainda livres tentar reorganizar as manifestações e tentar descobrir onde estavam os nossos irmãos militantes. Eu fiquei encarregado de percorrer hospitais e necrotérios de cemitérios em busca de informações; foi o que fiz. Nunca poderia imaginar que passaria por uma situação tão triste ao deparar-me com a cena que deparei naquela tarde no cemitério do catumbi, ao entrar Para pedir informações sobre entrada de algum indigente naquela semana posterior aos confrontos com as forças repressivas; era comum os agentes largarem corpos de difícil identificação, como pessoas atropeladas ou vitimas de todos os tipos de acidentes para serem enterradas como indigentes, quando na realidade eram militantes que haviam sidos mortos no cárcere e como nem sempre eram figuras importantes contrarias ao regime era mais fácil deixa-las serem enterradas como desconhecidos sem família ou responsáveis. Ali estava Angélica, a ser velada pela mãe algumas amigas, seu velho tio Rodolfo de quem ela havia-me falado algumas vezes, antigo militante do Partidão, hoje afastado de toda politica por não ter mais condições físicas para se entregar totalmente a luta, embora continuasse com toda lucides e convicções socialistas das quais nunca se afastara. O impacto daquela visão fatal pegou-me em cheio, não sei definir o verdadeiro sentimento, se de revolta estupefação, vazio interior total, só sei que a tristeza derrubou-me e fiquei ali prostrado sem poder desviar o olhar daquela cena pungente e dolorosa. Só depois das cerimonias fúnebres e da dispersão melancólica de todos os presentes é que fiquei sabendo do triste desfecho. Angélica havia sido levada para um local afastado da cidade, local este que servia de base para os trabalhos de tortura, assim era chamado o covil onde os torturadores tentavam arrancar informações dos detidos que eles elegiam ao seu bel prazer como pessoas importantes das organizações de esquerda. Angélica havia dado o azar de ser separada dos outros presos junto com um militante conhecido dos repressores, militante este que fazia jogo duplo tanto ajudando aparentemente a guerrilha armada que naquele momento da ditadura já estava em plena luta, como também as forças de repressão que já o haviam aliciado para o lado deles através de chantagens e ameaças. Este militante do qual vou declinar o nome, pois ele ainda tem familiares vivos e que não merecem depois de tanto tempo serem expostos à opinião pública, pois nada tem a ver com estes acontecimentos passados. O militante para se safar da tortura aproveitou-se da jovem ativista Angélica e entregou-a para os torturadores como se ela fora uma importante dirigente dos quadros do PCB e sendo assim ela teria muito a contar sobre os movimentos antirrevolucionários e seus quadros dirigentes. E foi assim que Angélica perdeu sua vida simplesmente por querer um Pais melhor para aquele povo que tanto amava sem mesmo ter a oportunidade de viver sua juventude que era promissora em termos de realizações. Morreu anonimamente, como muitos outros dos quais a historia não fala não por que não queira falar, mas porque apenas poucos tomaram conhecimento destas tragédias pessoais sem repercussão na imprensa e ate mesmo nos meios políticos pós-ditadura. Com este relato verdadeiro ou ficcional, não importa; fica a critério de quem se der o trabalho de ler, presto minha homenagem a todos que lutaram, que participaram e principalmente aos que tombaram anonimamente numa luta que espero o Pais nunca mais venha a enfrentar, mas lembrando sempre que não pode ser esquecida nem varrida para baixo do tapete da historia.
valmirolino
Enviado por valmirolino em 20/02/2013
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