Cinema (janeiro de 2013)

Quinta-feira, dezenove horas, Cine São Clemente, centro da cidade. Uma pequena multidão se organiza em uma longa fila ao redor da bilheteria do cinema. Eu, na fila, espero o momento de ser atendido. “Dois ingressos, por favor,” pensei. Dou uma olhada em torno da multidão, para ver se posso vê-la, mas o resultado é negativo.

“Atrasada como sempre,” refleti. Havia pelo menos cinquenta pessoas à minha frente, e a sessão de cinema começaria dentro de uma meia hora. “Bom, Cristine não estaria de fato atrasada, de uma forma ou outra, pois se chegar nos próximos trinta minutos, assistiremos o filme; É pura sorte que a bilheteria esteja fechada.”Refleti mais uma vez.

“Uma pipoca doce, por favor” disse para o pipoqueiro e agradeci, “muito obrigado.” Depois procurei contar quantos casais à minha frente, entre mim e a bilheteria, mas desisti, porque eram muitos, talvez vinte ou trinta casais. Automaticamente, olhei em volta para ver se via Cristine, mas foi em vão. Nem sinal.

Podia imaginá-la chegando de repente; e como sempre que se atrasava para um encontro diria, “Olavo, desculpa, não foi culpa minha meu amor”. Assim, chegaria Cristine para mim como chega de repente um resfriado de que não se suspeita. Não há modo de prevê-lo nem de evitá-lo. E haveria uma maneira de fazer com que não se repita? Inútil.

Em todo o quarteirão, nenhum sinal de Cristine. A fila ainda não dava sinal de andar, sinal de compasso, e isso – pensei mais uma vez – era um golpe de sorte. Mesmo que chegasse um pouco atrasada, nada parecia nos impedir de assistir o filme desde o começo. A fita (esqueci de falar), era de um filme badalado de Quentin Tarantino, chamado O Albergue.

Uma mão tateando minhas costas, e dedos que pularam rapidamente em minha face enquanto mãos me apertavam com força por trás – tentei virar-me para trás mas fui impedido – era Cristine. A primeira coisa que vi, depois que me desvencilhei de seus dedos e mãos, foi o olhar triste de desculpas. Como já previa, disse-me, “Olavo, desculpa, não foi minha culpa.”

Deslumbrei-me com seus pequenos olhinhos castanhos pedindo-me desculpas como se fosse a primeira vez. Sim, ela me pediu que a desculpasse como se nunca antes tivesse chegado atrasado a um encontro, como se fosse a primeira vez, como se não fosse uma vez de uma meia centena de vezes que chegara atrasada a um encontro, a uma sessão de cinema.

Descobri dentro de mim energia para lutar com Cristine ali mesmo, em uma sessão de cinema no Cine São Clemente, ali mesmo, em uma fila da bilheteria do cinema; os dois atracados, se esbofeteando, em frente de meia centena de pessoas. Mas este sentimento que me tomou por um instante foi embora com o começo do andar da fila. A bilheteria finalmente abriu.

Cristine me deu um abraço e, depois disso, me envolveu com o braço direito a cintura, encostando a cabeça em meu peito. Qualquer indício de tristeza que tivessem tido, havia cinco minutos, já não estava mais ali. Estava curiosa para saber do filme, sobre o qual despejou em mim uma torrente de perguntas. Enquanto isso, lentamente, a fila da bilheteria se movia.

“Olavo, é filme de terror? Eu fico muito assustada com filmes de terror.” Indagou-me Cristine, ao que respondi que “mais ou menos” e “é que parece que algumas cenas são muito fortes, li no jornal.”Ah, Olavo, por que não uma fita de amor, um filme de paixão descabida, filme romântico da gente chorar de pena?” Perguntou-me novamente Cristine, ao que lhe respondi:

“Filme romântico parece novela. E novela a gente assiste em casa.” A isto emendei, “Não quero parecer pedante Cristine, mas o filme que vamos ver hoje é um Cult do cinema Noir”. E continuei, “É como vinho bom, a gente tem que aprender a apreciar, ninguém nasce pronto para gostar ou não.” E terminei esvaziando meu saco de pipocas – que Cristine não quis dividir.

Ligeiramente contrariada, Cristine não me respondeu. Fez menção de falar, mas hesitou com o olhar por um instante, demonstrando certo desconforto para redarguir-me, e decidiu então deixar passar por menos seu descontentamento. Desatracou de mim, mas depois me deu um beijo sereno e estendeu sua mão para que eu a tomasse à minha.

Chegou a nossa vez. “Dois ingressos, por favor,”. Com um sorriso largo e simpático pedi ao bilheteiro. Dei-lhe uma nota de cinquenta e me devolveu três notas de dez reais. Contei as notas, abrindo a carteira, e acenei despedindo-me. A entrada para o saguão de entrada já estava aberta, e para ficar com os melhores lugares, entramos no cinema para esperar lá.

Cartazes de muitos filmes Noir estavam espalhados por todo o lado no saguão de entrada do lugar. O festival de filmes, que começara havia duas semanas, apresentaria ainda outros sete filmes até o final do mês. O Albergue era apenas um dos filmes a passar no São Clemente; Ao todo, seriam quinze filmes exibidos, cada um, duas vezes por semana no prazo de um mês.

Cristine não era mais criança, pois assim como eu entrara havia pouco em sua trigésima primavera (eufemismo para trigésimo ano de vida); mas não se continha ao ver doces. Agia simplesmente como uma criança. E não foi diferente no saguão do cinema: foi me puxando pela mão até um canto, onde se vendia uma grande variedade de dropes e outros doces.

Comprou um dropes de hortelã e me ofereceu um. Aceitei, mas apenas para não magoá-la – depois de minha introdução acalorada em defesa do cinema de arte Cristine demonstrou-se demasiadamente sensível. Para não atrapalhar a pequena fila que se formara em frente ao baleiro, arranquei com Cristine pela mão e ficamos abraçados a um canto do saguão.

Desvencilhando seu corpo do meu, disse Cristine, “As pessoas estão entrando. Vamos entrar para pegar um bom assento.” Assenti com a cabeça e deixei que ela me guiasse para dentro da sala de exibição. Entrando, sentamos próximos do projetor, na última fileira de assentos da sala. As pessoas entravam em um grande fluxo; Em breve, não haveria lugares para escolher.

As luzes se apagaram e, logo depois, veio o trailer: “Festival de semana no São Clemente, todo o mês de abril, das duas horas da tarde às nove horas da noite. Programação variada.” Um gosto de hortelã encheu-me a boca. Cristine me beijou. Tomei seu rosto nas minhas mãos e devolvi-lhe um beijo intenso, de cinema – beijo de língua. O filme vai começar.

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 31/01/2013
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