O dia em que o Mundo não acabou ( reedição)

Prêmio incentivo-30º C.L -Y.Takemto

Anunciaram que o mundo ia se acabar. E a notícia correu mais que cavalo desembestado.

Esse fato ocorreu quando da passagem de um grande cometa por aqui. O município de Sacipeba ficou em polvorosa. Vale aqui dizer, e não se sabe porque razão, nem todos os mapas oficiais constam a pequena Sacipeba.

Diziam que após a passagem do tal cometa o sol seria tragado por uma gigantesca força deixando por isso, é claro, a terra mergulhada na escuridão. Outros diziam que o firmamento se precipitaria sobre o nosso pobre planeta, dizimando de pronto mais da metade da sua população. E foi no meio daquela balbúrdia toda que um velho capiau apareceu gritando:

- Gente! Bamu mandá benzê fóscuro....

Essa fala, esse arauto, foi o indutor para que no espaço de meia hora todas as vendinhas e até botecos da cidade vissem acabar seus estoques de fósforo, velas, lamparinas e afins. Acreditavam eles que isso, pelo menos os livrariam da escuridão eterna. Por essa razão a grande praça que circundava a igreja tornou-se pequena para tantos devotos, tanto que foi preciso organizar várias sessões de benzimentos. O padre Honorindo nunca trabalhara tanto em toda a sua vida sacerdotal como naquele dia.

Porém, o que aconteceu naquela ocasião foi um dos maiores espetáculos da natureza. Era noite quando o halley atingiu o seu ápice e a noite quase ficou dia. Enquanto o astro cruzava os céus de Sacipeba exibindo a sua cabeleira alaranjada e a sua longa cauda azulada, uma chuva de prata acompanhava o evento enchendo o espaço com sua pirotecnia. O silêncio somente era quebrado pelas badaladas incansáveis do carrilhão da matriz.

Mas antes de isso acontecer, a pequena cidade ali cravada no cantinho sul de alguns mapas, vivia o seu normal como em qualquer cidade interiorana. E eram pregoeiros, jardineiros, gente cuidando do gado, da horta, dos porcos, galinhas, patos....

Na praça principal havia também um coxo e um cego que chamavam a atenção dos transeuntes por suas cantorias e patacoadas, além de outros tipos não menos curiosos que enriqueciam o cenário vivo da cidade.

Mais ou menos uns oito quilômetros dali, ficava uma linda fazenda. Lá milhares de Nelores contrastavam com aquela imensidão verde de pastos a perder-se de vista. Era propriedade de um influente cidadão Sacipebense, o coronel Libório Taurino da Mata, nessa altura, um velho caquético que há uns anos vivia num concubinato com uma formosa jovem de nome Helena.

Helena mereceria um capítulo à parte, porém, como cometas não esperam, só posso dizer que era uma jovem linda e faceira... Os seus argumentos físicos viravam a cabeça de qualquer homem, e não foi diferente para Apolíneo, o fiel capataz do coronel Libório. Mas até aquele momento, Helena não havia dado motivos. Vivia sob os olhares enciumados e ferrados do coronel e o fiel capataz dissimulava muito bem.

O velho Libório amealhara durante toda a sua vida uma fortuna incalculável. Era realmente poderoso, mas não pavoneava. Era rígido e até cruel em algumas decisões, mas era doce para com a sua Helena.

Apolíneo tinha carta branca em todas as propriedades do coronel. E foi num daqueles dias em que Libório Taurino da Mata viajara a negócios, que ele quase fez bobagem. Foi por uma porta.

Através de cálculos é possível determinar o ano, o mês e o dia da passagem de um cometa. Porém a morte, desde que seja natural ou acidental, não é uma ciência exata, claro! Justo naquele dia histórico da passagem daquele astro, o coronel Libório Taurino da Mata bateu com as dez. Vestiu o pijama de madeira, mas não uma madeira qualquer. Seu esquife era de mogno com detalhes em baixo-relevo e alças douradas, um luxo!

O passamento do coronel foi então comunicado aos quatro cantos, na medida do possível, porém por causa do apocalipse anunciado ninguém compareceu, nem mesmo a parentalha. Nunca se viu um cerimonial fúnebre tão pobre, ainda mais sendo protagonista aquele homem muito influente e rico.

Não houve as pompas que a circunstância exigia. Cortejo de parar a cidade, chuva de flores, carpideiras e etc.. em compensação; nem leitões, gado ou galinhas foram imolados. Nem cachaça correndo à solta. Ou seja; nem beberança nem comilança, coisa costumeira por aquelas bandas, também nessas ocasiões. E assim foi.

O finado estava tranquilo, bem preparado para a viagem, pelo menos esteticamente. O melhor terno, o melhor par de sapatos, maquiagem e etc... A natureza lá fora mostrava toda a sua exuberância, com certeza uma oportunidade única de uma vida, um privilégio, porém aquela gente confinada preferia os lamentos e as rezas, esperando que os anjos e santos lhe dessem a misericórdia.

O cometa então começou a riscar os céus da cidade enquanto alguns retardatários corriam até a matriz em busca também de abrigo e salvação. Os últimos a chegarem foram o cego e o coxo da praça. Mas ninguém notou o milagre acontecido. O cego enxergava e o coxo andava perfeitamente. Bem, mas naquele momento, o que isso importava se a preocupação única de cada um era salvar a própria alma?

Enquanto o cometa avançava em sua trajetória, na casa da fazenda, Helena e Apolíneo, os únicos lá no velório, aguardavam resignados as profecias alardeadas, embora a fé nos santos lhes desse ainda uma gota de esperança.

Mais tarde, sobre o linho frio da cama do quarto contíguo à sala, Helena deitou-se já cansada, ficando Apolíneo em pé junto à porta como se fora um guardião. A jovem viúva que até aquele momento não derramara um pranto sequer, começou a soluçar. Vendo a moça naquela angústia, que não se soube se era por causa da morte do velho coronel ou por causa do fim do mundo, o guardião veio ao seu encontro. Sentou-se ao seu lado e a confortou com um tímido abraço.

Lá fora o cometa já atingia o máximo de luminosidade enquanto os sinos soavam, soavam. Na sala, um corpo frio alumiado por quatro velas, e no quarto sob uma luz frouxa, dois seres avivados por desejos antigos, apesar da catástrofe anunciada. E as horas se arrastavam como incenso queimando.

Num dado momento ouviu-se na sala um grande ruído metálico. Eram castiçais caindo. Então, uma cena bizarra à revelia do resto da cidade. Incrível, o coronel Libório Taurino da Mata ressuscitara, e já veio com toda autoridade que tinha direito. Desvencilhou-se de algumas flores já murchas, fitas. Jogou de lado um rosário que lhe prendia as mãos e ainda sentado perguntou com voz anêmica:

- O que está acontecendo. O que se passa?

Viu a meia luz no quarto. Abandonou com alguma dificuldade o luxuoso esquife e para lá se dirigiu batendo os cambitos. Empurrou a porta e lá estavam os dois agarradinhos. Tentou gritar algo como:

- Apolíneo ....o.... quê?

- Vooocê? Perguntou Helena pálida e trêmula.

O jovem capataz é quem parecia mortinho da silva. Ficou branco como uma vela e desabou.

O recém-ressuscitado bem que tentou aproximar-se dos dois, porém, três ou quatro pequenos passos, caiu morto novamente, desta vez para sempre. Um médico mais tarde explicou tratar-se de uma mal chamada catalepsia. “Estado em que uma pessoa fica temporariamente com seus movimentos voluntários e a sensibilidade exterior suspensas”

O dia finalmente chegou. O sol resplandecia no horizonte. Nenhuma ruptura no céu, nada, nada. Mesmo assim aquela gente ficou ressabiada por mais de um mês. Quanto ao cometa, desapareceu vagarosamente no horizonte, prometendo retornar depois de muitas décadas, lá pra dezembro do ano de 2061.

Quanto ao coronel, foi sepultado às pressas. Os sinos finalmente pararam.

Aos poucos a cidade voltou ao seu normal. Pregoeiros, jardineiros, gente cuidando das suas coisas... Lá na praça era possível ver novamente dentre outros, o cego e o coxo esmolando em troca de cantoria.

Quanto ao fiel capataz, dizem que ficou amalucado e desapareceu pelo mundo deixando tudo para trás. Helena herdou um quinhão da herança do velho e teve um filho, que com o passar do tempo ficava cada vez mais parecido com Apolíneo.

José Alberto Lopes®

Dez. 2012

José Alberto Lopes
Enviado por José Alberto Lopes em 20/12/2012
Reeditado em 02/01/2023
Código do texto: T4045420
Classificação de conteúdo: seguro