A MEMÓRIA EM VIAGEM

“A viagem da memória não tem possibilidades de ser feita numa direção apenas: a do passado para o presente. Não é a sós que velejamos para os anos atrás em busca dos nossos eus.” Pedro Nava – Balão Cativo – Engenho Velho – pg.: 239 e 240.

Chamo-me J., tenho treze anos nesse meado de outubro de 1.968. Minha mãe chama-se MA. e meu pai M., tenho outro irmão e três irmãs, todos menores que eu. Morávamos numa casa simples de madeira em um bairro sem água encanada e luz elétrica. Próximo à nossa casa havia um campo de beisebol aonde os japoneses vinham aos domingos praticar seu esporte favorito. E tenho ainda uma avó materna que se chama ML. vive viajando e de tempos em tempos vem ficar conosco. A vida segue pacata e sem nenhuma novidade, a não ser essa semana em que meu pai foi pescar com uns amigos. A vida dura com o dinheiro contado da aposentadoria de meu pai por uma doença que o impossibilitava de trabalhar. Meu pai tinha em torno de quarenta e cinco anos, era branco e cabelos lisos e negros. Era franzino. Era um exímio contador de histórias. As mais mirabolantes. E minha mãe tinha trinta e oito anos, era baixa e rosto redondo e uma verruga no rosto na altura de um dos olhos. Ambos eram analfabetos, embora meu pai soubesse assinar o seu nome apenas. Lembro-me que aos seis anos, quando morávamos na rua debaixo dessa de agora, ele levou-me para colher algodão e eu deslumbrado com aquela brancura do vegetal, saí catando as maçãs maiores, sem ater-me que não era aquele caminho que deveria seguir, sendo repreendido por ele. Pois tínhamos que nos conduzir pelos pés que nos pertencia e não nos das outras pessoas. Foi uma experiência deliciosa aquele dia interminável. Nesse tempo, aos treze anos, eu era engraxate. Com uma caixa com pertences dentro eu limpava e engraxava sapatos no centro da cidade. Eu cursava a admissão, uma série logo após a o quarto ano primário, espécie de cursinho pra o ginásio. A minha classe ficava no segundo andar. Aos sábados colocava minha caixa nos ombros e me dirigia para o centro da cidade. Andava pela rodoviária, pelos hotéis à caça de freguês. Era uma época em que as pessoas gostavam de manter seus calçados limpos e brilhantes. As ruas fervilhavam de pessoas a pé. Eram tantos meninos com suas caixas. Eram concorrentes. E havia ainda locais estabelecidos para essa prática. Eu havia nessa tenra idade, trabalhado com papéis, vidros, ferro e até transportado almoço para uma pessoa. Eu era incansável. Determinado. Naquele tempo, um locutor andava pelas ruas com um gravador, entrevistando pessoas que solicitavam músicas para ele tocar em seu programa da tarde. Eu havia participado diversas vezes. Embora em casa não houvesse aparelho de rádio para ouvir a gravação e a canção solicitada. Às vezes corria à casa de um tio meu, irmão de meu pai, o tio A. no horário do programa e de lá ouvia todo o programa, visto que um primo meu o A. também gostava de ouvir. As primas O. e A. também ouviam, como também minha tia F. Minha tia F. era dotada de várias funções: costureira, cabeleireira e ainda aplicava injeções. Lembro que ela esterilizava as seringas de vidro fervendo em água no fogão. E meu tio A. era funcionário da prefeitura. Meu primo A. era cinco anos mais velho que eu. Nesse tempo meu primo A. se preparava pra servir o exército. A vida simples enchia nossos dias e apaziguava nossas esperanças. A vida preguiçosa e ao mesmo tempo atribulada. Os irmãos menores ainda sem noção da nossa realidade. Próximo de casa, havia um lixão, desses em que a prefeitura jogava o lixo coletado nas casas. Íamos quase todos ali escavar e procurar algo rentável: papel, metais, etc. Os bairros ali próximos possuíam poucas ou nenhuma casa nessa época. Meu pai possuía outro irmão além de meu tio A., o meu tio F. que residiu no estado do Paraná e depois se mudou para São Paulo. Pouco ou nada sabia dos meus primos e primas. E uma irmã, a tia N... filha do meu avô com outra mulher, a avó S. que morava com a tia N. em São Paulo também. Desse modo uma parte de nossa árvore genealógica estava montada. Minha mãe MA... possuía uma irmã e dois irmãos: a tia S. e os tios J. e D. que moravam outras cidades.

Naquela semana meu pai M. tinha ido com uns amigos a uma pescaria, e voltaria no final de semana. Aquela sexta-feira terminava repleta em luzes coloridas no por do sol. A tarde caía e ia deixando um colorido entristecido nessas cores vivas, nessas luzes se apagando. Ali pelas sete horas da noite quando um carro estacionou na escuridão de nosso portão e do interior desceram pessoas e entre elas, meu pai. Minha mãe adiantou-se para acompanhar o desembarque dos pertences e nós filhos ficávamos distantes. Mas pude ouvir que haviam voltado por causa de um mal estar de meu pai. Ao seu chamado pela minha mãe, apareci por perto e ajudei no transporte dos pertences e os homens foram embora. Ouvi minha mãe resmungar algo como que eles haviam era bebido e não pescado. Na verdade eu não vi peixe algum nas tralhas de meu pai. Lembro-me que meu pai apenas silenciava. Depois do banho dele e do prato de sopa, ouvi minha lhe dizendo:

- Amanhã você vai me ajudar lavar esse cobertor que sozinha eu não consigo.

Não me lembro de ter ouvido ele dizer ou retrucar algo. Os seus cabelos negros e lisos já não pareciam tão brilhantes como antes. Havia em seu semblante, se um menino de treze anos podia observar isso, certo desconforto expresso nele. Um cansaço bem aparente. Logo após a sopa inacabada, tratou de deitar-se. E não tive notícia de sua noite de sono: se foi tumultuada ou tranqüila. A casa toda de madeira, sem portas internas, qualquer ruído seria ouvido. Como era sexta-feira, eu dormia cedo, pois logo de manhã, no sábado, iria com minha caixa engraxar sapatos no centro da cidade. Meu pai nesse tempo ou no tempo em que o conhecia era aposentado por invalidez, devido uma anormalidade na visão. Há histórias de ambos, meu pai e minha mãe, que no início do casamento, eles, além do trabalho habitual: ele ajudante geral em construções e ela em casa de família, ainda em casa cuidavam de esterco: secavam, esfarelavam, ensacavam e depois vendiam, não sei como era feito isso. Ou se já era uma encomenda de alguma pessoa que utilizava esse material em hortas ou jardins. Sei que pela época, eles tinham uma vida confortável. Eles se casaram em 1.953, (e se não me engano no dia 28 de fevereiro) e nesse ano de 1.968 eles completavam quinze anos de casamento. A vida simples, às vezes sofrida, mas lúdica. Uma época de poucas oportunidades. Carregada de sonhos pueris. A informação chegava com atraso, a cultura era pouco divulgada. Alguns raros aparelhos de rádio e outros poucos aparelhos de televisão divulgava o que era possível. O mundo não se desenhava, era apenas rabiscado. A cultura era produzida, mas a poucas pessoas era acessível. No meu caso eu só viria a ter contato com a literatura no ano de 1.971 através de uma professora. Naquele momento apenas os clássicos eram possíveis. Mas sabíamos que o mundo fervilhava. Eu era ingênuo e tímido. Para mim nesse tempo não havia maldade nas pessoas. Na verdade, a gente nem se lembra se pensava nessas coisas. Deixava a vida correr seu curso normal, sem intromissões. Lembro que meu pai era uma pessoa muito popular naquele lugar aonde vivíamos e era muito magro também. Porém, lembrar pessoas que não vemos há muito tempo, é como lembrar algo vago, distante no tempo, uma espécie de hiato impreenchível. E tentar reconstruir essa imagem é alguma coisa dificílima. O mundo e o tempo pareciam parados. Numa velocidade menor. Freada. O tempo anterior é uma sublime recordação que nos empresta sua saudosa manifestação. O tempo escorre pelos dedos como algo intangível. Ao menino de treze anos muitas coisas eram sagradas e incompreendidas. Os sinais não eram visíveis. Os sinais não se aparentavam claros. Algo perturbou seu sono nessa noite. Algo que não soube compreender. Seu sono foi como a chama da lamparina, que tirava um pouco a escuridão da noite naquela casa: oscilante. A situação de seu pai chegando da pesca e o monólogo de sua mãe com seu pai me perturbaram. Pela manhã ainda escura, levantou-se, lavou-se e de posse de sua caixa de engraxate, saiu pela rua em direção ao centro da cidade. Aquela manhã pouco ou nada produziu. A caixa pesava tanto quanto seus pensamentos obscuros e sem sentido. Não me atrevi ir longe dali á procura de freguês. E parado poucos se avizinhavam dele. Os fregueses não vinham e ele nada ganhava. Porém foi parado ali que eu recebi a notícia de um conhecido. A pessoa disse-me que soube que meu pai havia sido internado no hospital. Ali estarrecido fiquei. Perdi o foco. Paralisei. Por momento não soube o que fazer. Ir embora ou sentar-se ali. Olhei a rua em direção à minha casa e ela pareceu-me melancólica. A rua pareceu tortuosa. Às vezes parecia que tremia. Faltava o ar. Faltava noção de tempo e espaço. A dureza das tábuas da caixa o importunava. As quinas o molestavam. Nem me lembrei de pedir á pessoa confirmação do ocorrido. Parece que meu íntimo adivinhava isso desde ontem. A tristeza parecia-me íntima. Resolvi a passos lentos dirigir-me para casa. E assim fiz. Passos lentos, comedidos, um não querendo chegar. A caixa não me incomodava mais. Outras vezes imaginava a caixa um fardo. Os pés, as pernas, a cabeça pesavam tanto quanto meu corpo. Embora meu íntimo mergulhasse no acontecido que acabara de saber, ainda o dia a dia pesava fortemente em meu pensamento cotidiano. Aquele quase saber nada. Aquele insidioso correr do tempo sobre sua juventude. Imaginava que em casa haveria o reboliço do acontecido. A casa simples nunca entrou e saiu tanta gente de modo contínuo. Cheguei em casa com os pés sujos e suados, escorregando no chinelo de dedos. Era esse meu mundo. Era esse meu habitat. Era esse meu modo de vida. Vi as irmãs, o irmão. Procurei algum adulto. O chão de terra batida abafava meus passos tresloucados. Ainda nenhuma notícia havia vindo do hospital sobre a doença e a gravidade de seu pai. Os treze anos me desabilitavam de qualquer teoria ou tese. Pouco sabia sobre aquele momento. Era um vir e ir de sensações desconexas e incompreendidas na tenra idade. Tantos meninos e tantas meninas como ele passaram sensações iguais àquelas. A literatura abunda enormemente essas narrativas. Era um menino apenas em busca do pão, ainda sem sonhos e desejos e nem esperanças fincadas. E a que a realidade lhe mostrava algo duro. Como se uma falta, uma ausência lhe plantava à porta. Tempos atrás perdera um irmãozinho de sete meses. Mas a situação era diferente, mas a sensação se repetia. As vozes que ouvia nada denunciavam. Era um silêncio aterrador e cochichado. Os adultos ao me verem, apenas me encararam com silêncio. Ali tive a primeira de muitas sensações de como o ser humano é frágil. A busca por uns trocados que fazia ao engraxar, era tão dificultoso quanto um deslizar de vida como a que presenciava agora. Pouco ou nada sabia da gravidade do ocorrido com meu pai. Mas hospital era algo terrível a mim. Aquele aroma de remédio me inebriava. Vendo-me chegar um tanto quanto perdido, minha avó materna, aproximou-se de mim. Ajudando-me com a caixa, indagou-me se já sabia e apenas movimentei a cabeça afirmativamente. Disse-me que à noite, iria com ela fazer uma visita ao meu pai. Apenas concordei silenciosamente. O restante da manhã e toda tarde arrastaram demoradamente. Fiquei pela casa, mergulhado num silêncio profundo e via meus irmãos menores e sentia pena por eles. E por mim também. A angústia e a incerteza entraram em meu íntimo de forma avassaladora, cerceando meus movimentos mais serenos, ou minha atitude mais relevante. Ao anoitecer, no aparecer das chamas flamejantes das lamparinas e lampiões, a tristeza também desceu sobre a família. Sem energia elétrica nas casas e água encanada ainda chegando, a vida das minhas pessoas sempre fora uma improvisação, tendo como referência sempre o fogão de lenha, aonde era preparada a alimentação e mantida água quente para o banho. Para assar pão caseiro, cheiroso. A brasa vermelha, queimando, para o ferro a carvão para alisar roupas. Foi orientado tomar banho, lhe fornecido roupas limpas e adequadas a uma visita ao hospital juntamente com sua avó materna. Dentro do banheiro pode sentir a presença de meu pai, pois fora ele quem construíra aquelas paredes. Agora imaginava seu silêncio num leito hospitalar. A mente é sempre mais rápida do que os atos. No balanço do tempo, os gestos fazem algum alvoroço na alma apertada nessa perda eminente.

E quando silenciosamente a noite caiu, eu e minha avó materna ML. Ao hospital submergido numa incerteza relevante. Já na entrada do prédio a respiração tomou certa aceleração ainda controlável. Conforme caminha pelos corredores, olhava os quartos e doentes dentro deles. E aos poucos aquele clima todo já estava inserido nele. A avó adulta já, pouco se importava com essas situações. Já não se comovia facilmente. E deslocava-se pelos corredores sem nenhuma anormalidade. Quase ao final do corredor, à esquerda, estava o quarto e meu daí deitado socorrido por máscara e alimentado com oxigênio. Entramos e em silêncio, ficamos próximos à cama. Tudo nele era suave. Não havia movimentos. Os olhos fechados. Um sofrer silencioso. Entrou pela porta um parente anunciando que no outro quarto havia nascido a filha de outro parente. De repente ficara dividido entre duas notícias. A doença do pai e o nascimento de uma criança logo ali próximo. Nem sei ao certo quanto tempo ali ficamos, sei que minha avó entrou no outro quarto para ver a criança e eu fiquei apenas na porta.

Ao deixarem o hospital, a mesma sensação ainda tomava conta de mim. O final da noite, a madrugada, transcorreu sem novidades. Porém, todos foram acordados á seis e pouco d amanhã do domingo, com a notícia trazida pela minha tia F., esposa de meu tio A., irmão de meu pai M.:

- Comadre, o compadre faleceu ás cinco horas.

Era 20 de outubro de 1.968.

Lins, 12 de agosto de 2.011 a 02 de dezembro de 2.012.

2.012