Horário de verão (outubro de 2012)

O horário de verão sempre me deixa desorientado, algo defasado, um pouco aturdido. Já não vou dormir da mesma forma de antes: a impressão que fica é que dormi tarde, na madrugada adentro. Quando quero assistir à novela das nove, sou todo bocejos, porque acaba que (para meu relógio natural), a novela não começa antes das dez horas da noite. De fato, tudo muda.

Então estou aqui, nessa manhã quente de outubro, sentado em uma lanchonete a observar o mundo entre uma xícara de café e outra. Estou agora na terceira xícara de café e o mundo se desvela com uma jovem de dezoito anos (?) que corre com um vira-lata preso firmemente à coleira. Atravessam os dois na faixa de pedestres em direção à praça que fica logo em frente.

Logo, não há mais a jovem e o cachorro vira-lata. Atravessaram rapidamente a praça em frente à lanchonete e (ladeando uma quadra de esportes), desapareceram os dois na avenida bem mais à frente. O meu relógio biológico diz que são nove horas, mas de fato são dez horas de uma manhã com horário de verão. Onde estará a jovem com seu cãozinho simpático?

A jovem com o vira-lata não sabia nada de horário de verão. Provavelmente não sabia, pois o ritmo com o qual impunha sua corrida era o ritmo de uma caminhada de nove horas – não muito mais tarde do que isso. Pensei comigo mesmo: se a jovenzinha com o vira-lata soubesse do horário de verão, sua uma hora a mais, pareceria mais cansada e o cachorro também.

Mas, que besteira eu aqui (reflito), com mais uma xícara gigante de café, tentando imaginar o que uma transeunte (verdade é que era uma linda transeunte), pensaria a respeito de seus horários de exercícios. Tentar imaginar o que pensam as pessoas é, verdadeiramente, um costume estranho que tenho. Às vezes, nem percebo e já estou começando uma nova análise.

Tentar imaginar o comportamento alheio é um vício que tenho – vício este que começou nem sei mais nem onde. Esse imaginar que tenho toma conta de mim às vezes e, confesso, corro o risco de ser atropelado ao atravessar alguma rua em algum sinal vermelho para pedestres. Eu (como se), desligo o meu senso de direção enquanto redobro a atenção sobre um novo alvo.

Sorvi meu café até a última gota descer pela garganta. Como pretendia ficar ali sentado por mais tempo, pedi uma garrafinha pequena de água mineral. “Sem gás, por favor.” O garçom mal havia deixado a mesa quando eu percebi, ainda pequeno em meu horizonte voyeur (quer dizer, viciado em observar os outros), um menino negro de camisa vermelha.

O menino (não tinha mais de quinze anos, calculei), vinha em minha direção impondo a si mesmo um paço apertado, apressado. Nas mãos, muitas pastas e uma pequena bolsa a tiracolo. Logo, deduzi seu destino: o banco do outro lado da praça. A julgar por seu jeans surrado, pela camisa polo vermelha, pela bolsa e os diversos papéis... era office-boy.

Já aproximávamos das onze horas da manhã (horário de verão; dez horas no meu horário biológico), e o menino office-boy não queria perder tempo: Tinha a consciência de estar trabalhando, pois não piscava os olhos nem olhava para os lados. Trazia muitas ordens de pagamento, pedidos de saque e depósito, e documentos variados de banco.

Mas o menino tropeçou e, de repente, todas as pastas espalharam-se pelo chão. Por sorte, nenhum documento dos pacotes (ou das pastas), que desabaram de suas mãos soltou-se. E, também por sorte, algumas pessoas pararam sua caminhada para ajudar o rapaz a juntar tudo em suas mãos novamente. Se estivesse mais próximo de mim, certamente o teria ajudado.

Correra tudo bem, mas para mim (que tenho o vício de analisar os outros), sabia que o rapaz não seria tão estabanado se não fosse o horário de verão ao qual ele não se havia ainda acostumado. Pensei, “acordou tarde e, assim que deixou a cama e tomou um banho, pôs-se freneticamente a caminho do trabalho para, dali, ir de encontro com as suas tarefas matinais”.

Sentado na lanchonete, terminava minha garrafa de água quando pedi ao garçom a conta. Aproximadamente onze e quinze da manhã de outubro, uma grande quantidade de pessoas faziam um zigue-zague nas ruas em torno da praça. Muita gente caminhando em direção a algum lugar ou de volta de outro lugar. Era uma manhã quente e agitada, mas bonita.

Muitos carros que se engastavam em torno da pracinha também ajudavam na impressão de que os motoristas, sonolentos, se arremessavam uns sobre os outros (com toda atenção para que não batessem), buzinando alto para despertarem todos para o novo horário de verão. Enquanto isso, eu tomava tranquilamente a água de minha garrafinha PET reciclável.

Permaneci por um longo tempo observando o caminhar do mundo a partir da lanchonete: tanto a moça com o vira-lata na coleira quanto o jovem office-boy que carregava documentos nas mãos e na bolsa a tiracolo já haviam ganhado o mundo. Cada qual em sua direção, cada um a caminho de suas obrigações, perdi de vista os dois primeiros personagens do meu dia.

Depois de pagar a conta, fiquei sozinho em companhia da garrafinha de água. De golada a golada, demorei meia hora para esvaziar 350 ml de água sem gás. Na medida em que dava uma golada pequena, na mesma proporção, meus transeuntes atravessavam de canto a canto em minha memória e desapareciam sem falar comigo ou prestar qualquer satisfação. Sumiam.

Foi aí que, neste momento, veio a mim a ruiva do meio-dia (ou onze horas para o meu relógio biológico). Desinibida, sorria enquanto deixava o taxi na minha cara, em frente à lanchonete onde eu jogava fora o meu dia. Muito branca, alta, magra, e ruiva. Em minha análise, esta estava de acordo com seu próprio relógio biológico. Assim como para mim, ainda era cedo.

Percebendo por um instante que estava sendo observada por mim, mandou-me uma piscada de olho e simulou um beijinho. Eu, instantaneamente, morrendo de vergonha virei o rosto para o lado oposto. Em minha vasta experiência de voyeur, de observador, apenas uma ou outra pessoa percebeu o meu escrutínio. A maioria passa indelével às minhas análises.

Ao que tudo indica, depois de deixar o táxi, a ruiva entrou na galeria de comércio atrás da lanchonete. Não a vi mais. Comprei então um jornal, direto no jornaleiro da esquina; agradeci com um aceno ao garçom da lanchonete e pus-me a andar na rua. Atravessando a faixa de pedestres, tive a impressão de estar sendo seguido pela ruiva, mas foi engano.

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 22/10/2012
Reeditado em 13/07/2017
Código do texto: T3947045
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