O Kestrel

Vamos embora, não tem fruta nenhuma aqui!

- Você tá é se borrando de medo dos alemães, Tom. Deixa de ser medroso!

- Se a gente não voltar na hora da contagem a gente vai acabar sapando minas! É isso que você quer, John?

- Continua procurando, se não tiver fruta tem ovos, quem sabe até uma galinha ou duas. Você não quer comer frango assado do jeito que a sua mãe prepara?

Ambos continuam sua procura, seu humor, algo entre temerosos e entusiasmados. É difícil não ficar animado com a chegada da Primavera depois de passar meses de chuvas, ratos, frio e neve dentro das trincheiras esperando apenas por um morteiro para serem desmembrados e soterrados. A possibilidade de comida e ar frescos foi mais forte que o medo das balas alemãs ou do severo regulamento disciplinar, levado à risca na infantaria.

- Escuta John, é um gavião!

- Gavião nada, é falcão mesmo, é um kestrel. Os Hunos ainda os treinam para atacar os nossos pombos-correio. É sempre assim. E em algum lugar uma companhia fica sem receber o apoio de artilharia. Os malditos pássaros!

Os piados longos do kestrel circulam sobre o pomar. Sempre próximos.

- O Mick me falou que os americanos usam tacos de basebol e derrubam os falcões em voo.

- O Mick é um cascateiro só você não sabe disso, Tom. Para ele, toda vez que ele chega em Paris o povo faz um desfile para recebê-lo e ele tem diversão grátis em todos os bordéis da cidade... e você acredita!!!

Dois soldados, a infantaria transforma meninos em homens, dizia o cartaz de recrutamento. Para o Capitão Adler estes dois continuavam sendo meninos, não muito diferentes dele mesmo há alguns anos atrás, saído de uma escola britânica direto para uma escola de oficiais na Bavária. Para o sargento Schultz, mirando com o fuzil Mauser, a seu lado, nem isso, eles eram marcas no centro da alça de mira. Como diabos estes garotos vieram dar com os costados em um viveiro de falcões?

- Engraçado, se este sítio está abandonado, porque o pomar está tão bem cuidado?

- Se você acha este lugar bem cuidado você tem que visitar a nossa terrinha! Se eu deixar o nosso pomar desse jeito, meu pai me dá uma surra de cinta!

- Quando eu era criança, achava que as frutas já vinham na bandeja, prontas para comer.

- O filho do nosso senhorio era assim também, o coitado, ouvi falar que ele morreu no Somme no ano passado.

Os jovens se calam, continuam silenciosamente sua busca por frutas, ovos, moedas ou qualquer coisa que justifique sua saída furtiva do acantonamento. O Sargento Schultz treme o dedo, impaciente, no gatilho, o Mauser prende a respiração, antecipando o momento de disparar. O sargento olha de canto de olho para Adler, implorando silenciosamente pela ordem, que demora em vir.

- Eu acho que ele deve ter ninho por aqui. - abaixa e pega um longo galho seco.

- Que você vai fazer com isso?

- Vou rebater o Kestrel, que nem os americanos do Mick!

- Que ideia mais idiota, Tom! Danem-se os americanos do Mick, você parece um retardado aí, segurando este galho e olhando pra cima em todas as direções! - Ele ri um sorriso infantil.

- Você vai ver, vou rebater um Kestrel e salvar um batalhão inteiro, eles vão me condecorar!

- você vai é ficar zonzo e cari por cima desse galho! Eles vão te enfaixar! - Ambos riem.

O sargento impaciente ri antecipando a matança. Ele não entende uma palavra do que os meninos estão falando, mas só quer fazer o que lhe disseram que seria sua missão... matar ingleses, franceses e tudo o mais que não usar uniforme semelhante ao seu.

O Capitão se pergunta se está demorando demais para autorizar os tiros. No fim das contas Schultz estaria até fazendo um favor colocando estas crianças para dormir e as poupando de meses em uma trincheira fedorenta. Mas são apenas garotos, afinal de contas, ele pensa, roubando frutas e ovos no sítio vizinho. Ele pousa a mão no ombro do Sargento, que já está nos instantes finais de disparar o tiro fatal contra um dos meninos.

- Última forma, Sargento.

A contragosto o sargento se imobiliza, relaxando o dedo do gatilho de seu Mauser. Ele aguarda em posição de disparo, o fuzil, um tenso instrumento de morte em suas mãos. O Sargento não entende nem concorda com este atraso na execução da sentença dos dois jovens soldados inimigos, mas o condicionamento é o condicionamento, não se questiona ordens superiores.

- Venha, Sargento, vamos ensinar uma lição a estes Tommies! - diz Adler e ante a surpresa do subalterno, abotoa sua túnica, ajeita os cabelos e coloca o quepe. Faz sinal para seus dois ordenanças e para o atirador que façam o mesmo, após o que, empertiga-se e e faz sinal para que o acompanhem.

- Alto! - Ele grita em seu inglês de Ethon, quando sai do abrigo, empertigado, botas laqueadas rangendo e acompanhado de sua pequena tropa.

Seus soldados, mantém seus fuzis prontos para atirar à menor menção de movimento.

Pegos de surpresa, com os sorrisos lentamente se dissolvendo no rosto, um e outro soltam o fuzil e o bastão e, lentamente, levam suas mãos acima da cabeça. Um dos inglesinhos, o mais jovem, supor-se-ia, urina nas calças. Os subalternos alemães riem e o menino ruboriza fortemente. Vou ser como um daqueles cadáveres com as calças cheias de bosta, a prova final de sua covardia, conclui.

- Isto é inaceitável! - Adler berra em tom de comando - Esta é a maneira que vocês miseráveis pretendem vencer a guerra??? Em forma frente para Leste, agora!

Sem hesitar, os garotos obedecem a ordem, rapidamente, posicionando-se de frente para o capitão alemão. Rapidamente alinham-se, e assumem posição de sentido.

- Vocês também, em forma! - dirigindo-se a sua tropa. Ainda sem entender, seus soldados obedecem hesitantes. Talvez tudo aquilo seja alguma espécie de brincadeira de oficial.

Adler rapidamente comanda “descansar” e passa em revista sua pequena tropa. Seu sargento atirador está ruborizado, furioso. Os cabos apresentam expressões confusas. Ele inspeciona o uniforme de um por um, ordena que o cabo prenda a ponta de seu conto sob a fivela; que o sargento se barbeie assim que sair de serviço. Os jovens soldados ingleses foram mantidos ao centro da formação. De perto parecem mais jovens do que considerara; de perto, parecem crianças. Ele pede apresentação pessoal. Cada um deles, a seu tempo, assume posição de sentido, revela sua graduação, nome de guerra e unidade. Ele pergunta seus prenomes e acha curioso eles se apresentarem como John e Tom.

- É assim que o treinamento que receberam recomenda que se apresentem ao inimigo? - pergunta severo. - Coloque as fraldas desta camisa para dentro da calça, garoto! Abotoe a túnica! - John irrompe em atividade frenética, obedecendo ao alemão.

- Onde está sua cobertura, soldado? - dirigindo-se a Tom.

- Senhor, eu a perdi nos arames farpados, senhor! - admite, corado, não se sabe se mais cnstrangido ainda pelas calças molhadas, por ter perdido sua cobertura em uma barragem de arame farpado ou por estar se reportando a um oficial alemão.

- Ter perdido a cobertura te dá o direito de não abotoar a túnica? - pergunta ríspido.

- Senhor, não senhor! - responde imediatamente.

O oficial saca de seu punhal e um a um arranca os botões que se encontravam fora de suas devidas casas.

- Se eles não servem para abotoar, não servem para nada! - comenta, embainhando seu punhal.

- Senhor, sim senhor! - concorda Tom.

- Mas é claro que sim! - desviando seu foco de atenção – Esta barba não foi feita adequadamente, soldado. Assim que sair de formação o senhor vai se barbear, entendido?

- Senhor, sim senhor!

- Os senhores vão se dirigir imediatamente ao escritório de sua unidade e receber a penalidade disciplinar por se ausentarem e pelas alterações de uniforme e de barba, fui claro?

- Senhor, sim senhor! - respondem atônitos e em uníssono.

- Muito bem, apenas os dois: “Fora de forma... Marche!” - Ante os olhares atônitos de seus subalternos, imóveis na formação, os dois ingleses rompem marcha e se colocam em retirada acelerados.

Antes que a dupla desaparecesse, correndo, em meio às sebes que circundam o sítio, Adler ainda acrescenta:

- Não é possível bater em um Kestrel em pleno voo com um pedaço de pau, isso é uma ideia idiota!

- Não te falei? - já ao longe ainda se ouve.

- Cala a boca, John!

Adler acrescenta de si para si:

- Não vai ser aqui, não vai ser hoje que crianças vão ser abatidas nesta guerra sem sentido.