Invernadas II (agosto de 2012)

Um ruído muito forte fez com que se levantasse da cama de sobressalto. Era barulho de briga de vizinhos, barulho de bate-boca, um fuzuê em torno da disputa de vaga de estacionamento para o carro na garagem. Assim que se pôs de pé, seguiu tateando no escuro até a janela que dava para o estacionamento, a janela da cozinha. Era realmente o que pensava.

Passava-se das seis horas da noite enquanto o sábado de inverno anoitecia. Jairo levantou-se de sobressalto na penumbra por causa da ruidosa discussão acerca de uma vaga mal-utilizada na garagem do edifício. Dois homens discutiam apaixonadamente sobre uma vaga de estacionamento e, por muito pouco, não saíram de tabefes um com o outro. Por muito pouco.

Jairo aproveitou que estava na cozinha para fazer um café: pôs para ferver um caneco cheio até a metade de água e preparou o coador de pano com pó de café até um terço de sua capacidade. Depois, ainda sonolento, deixou-se desabar descuidosamente na cadeira , sobre a pequena mesa da cozinha. Deu uma olhada na primeira página de um jornal que encontrou ali.

Aproveitava para aquecer os ossos sentando-se próximo à chama do fogão e estirando as duas mãos sobre o caneco da água do café. Aproveitava para reunir forças e despertar de uma vez do sono que a discussão em torno de um carro forçou-o a despertar. Um ruído agudo na janela entreaberta da copa, ruído de assovio pequeno, mas constante, denunciava a ventania na rua.

Jairo foi até a copa e perfilou o corpo junto à janela. Dava para ouvir melhor o assovio do vento e as árvores balançando de um lado para o outro. O barulho da discussão no estacionamento parecia ter se silenciado. Agora eram só o assovio do vento e a sacudida ruidosa das árvores o que dominava tudo invadindo os ouvidos e fazendo tremer o corpo.

Deixou por um momento a janela da copa e caminhou para a cozinha com o corpo tremendo de frio; tinha afinal de vigiar o fogão para o café que preparava. A água do caneco já começava a ferver. Retirou cuidadosamente o caneco do fogão e derramou com atenção seu conteúdo no coador de café. Em dois ou três minutos o trabalho já estava terminado.

Pôs café na xícara o café e segurou com as duas mãos para aquecer os membros superiores. Fazia muito frio no apartamento e, ainda mais frio entrava pela janela da cozinha. Deu-se conta de que estava no escuro e, cômodo por cômodo, foi acendendo as luzes todas do apartamento. Acendeu até mesmo os banheiros e a lavanderia que ficava atrás da cozinha.

Sentou-se novamente na cadeira rente à mesa da cozinha e pôs-se a folhear o jornal de ontem. Havia notícias de assalto a banco, notícias sobre uma gincana da juventude, notícias sobre o aumento de impostos no leite. Com grande desinteresse, Jairo passou um olho rápido em tudo enquanto prosseguia sorvendo o café na xícara pequena de porcelana.

Jairo não se sentia sozinho, uma vez que o assovio constante do vento que entrava pela copa do apartamento forçava sua presença em todos os cômodos. Era uma presença indesejada, uma vez que fazia eriçar todos os pelos do corpo, uma vez que traduzia-se em um frio capaz de gelar, uma vez que incomodava muito.

E foi assim que Jairo sentiu que era hora de vestir um agasalho, sentiu que era hora de proteger-se do frio que invadia seu lar: ele vestiu um suéter e, em cima deste, um pulôver de pura lã. Do quarto, fez zás-trás o caminho que levava à xícara de café sobre a mesa da cozinha. Restava ainda um quarto de café na xícara.

Engoliu o restante de café e derramou mais um trago na xícara vazia. Sentia-se despertando mais um pouco do sono de muitas horas. Estava tão cansado na sexta-feira que, dormindo depois do jornal da tevê, foi acordar já na noite do sábado. Não que tivesse um compromisso, muito pelo contrário, mas considerava imoral dormir mais que o dia.

Acreditava que o frio era o responsável pela sua “hibernada”; seria o responsável por ter dormido aproximadamente vinte horas da noite de um dia para a noite do outro. Lembrando-se de um programa de televisão que passaria na tevê àquela hora, tomou a xícara de café nas mãos e prostrou-se em frente à tevê na sala. Foi quando tocou o telefone.

Jairo deixou o café sobre a mesa da sala e estirou o corpo sobre a poltrona para alcançar o telefone. Era o Tôco, seu melhor amigo, lhe perguntando se já havia começado a chover ali. Respondeu que não, mas que ventava forte e fazia muito frio. Tôco morava há trinta minutos de distância, uns dois bairros adiante em distância do bairro de Jairo, e lá já chovia forte.

Conversaram um pouco sobre um jogo de loteria que fizeram no bolão da firma. O prêmio já estava acumulado por dois sorteios. Tôco e Jairo encantavam-se com a possibilidade de ganharem uma bolada no sorteio, fariam viagens e compraria cada um, um home theater. Jairo ainda compraria uma casa para sua mãe.

Jairo desconversou (o programa de televisão o chamava), e mentiu para Tôco. Disse que tinha que acudir o caneco de água fervente na cozinha. Mentira, pois já havia coado o café. Mas era necessário mentir para Tôco, porque este quando engatava em falar não parava mais. Tôco sabia quando ser chato. Desligaram o telefone e Jairo pegou o controle da televisão.

Ligou o aparelho e sintonizou na tevê educativa. O programa que queria assistir já havia começado a alguns minutos: era um programa sobre cinema amador na cidade. Recostou na poltrona com os pés sobre a mesinha de centro e, nas mãos, ergueu a xícara de café já frio. Não gostou do café, mas pegar outro só mesmo no intervalo comercial.

A chuva chegou com força nas janelas do apartamento: Jairo teve de levantar-se, para fechar a janela semiaberta da copa, aproveitando para passar rapidamente na cozinha e encher uma xícara de café bem quente. Voltando sem cuidado para a sala, escorregou em uma pequena poça d’água que escorrera da janela e derramou todo o café no corredor.

Levantou-se do chão devagar e foi à cozinha buscar um pano limpo para limpar a bagunça e secar a poça de água que se formara na copa. Nesse meio tempo, sem que se desse conta, Jairo perdera o programa de cinema na tevê. Quando percebeu que o programa acabara, resignou-se: não era hoje o seu dia. Pensando nisso, Jairo desligou a TV e deitou-se no sofá.

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 19/08/2012
Código do texto: T3838985
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.