Quem desdenha quer comprar

Aninhou os braços contra o peito na tentativa vã de proteger-se do frio, da vida e dos pensamentos que se chocavam em um caos absurdo e temerário. Af! Que dia!

O vento cortante de maio parecia atravessar seus ossos e uma rajada mais forte transformou a rua em um tapete de folhas mortas e distribuídas de forma irregular.

Percorreu os poucos metros que faltava já se sentindo grata pelo calor e aconchego que encontraria em casa.

Estranhou não ser recebida por Théo, o gatinho vira-lata adotado meses atrás e desde então seu fiel companheiro, desde que devidamente mimado e alimentado, que fique registrado.

Provavelmente ele estava em uma de suas misteriosas excursões pela vizinhança, pensou enquanto preparava algo quente para beber.

Quase derrubou a xícara de café quando a campainha soou estridente e invasiva. Passou rapidamente os olhos pelo mostrador do relógio e sentiu-se apreensiva. Não recebia muitas visitas, principalmente à noite.

Aproximou-se sorrateira da janela que lhe dava uma visão perfeita da porta de entrada e foi invadida por um assomo de irritação ao reconhecer o vulto que esperava pacientemente.

Era o filho lindo da vizinha que morava três casas à esquerda e que estava passando uns dias com a mãe. Admitiu a si mesma que no início estava bastante interessada afinal era um gato. Não seria nada mau dar umas pegadas de respeito naqueles bíceps, tríceps e todo o resto, mas sua empolgação foi por água abaixo ao ouvi-lo conversar sem querer no celular.

Certamente toda a arrogância e prepotência do mundo tinham sido comprimidas para caber naqueles mais de metro e oitenta de homem. A antipatia foi imediata.

Sabia que as luzes acesas denunciavam sua presença em casa e não tinha alternativa que não fosse atender. Que droga! Resmungou mal humorada.

Preparou seu melhor ar “Cai fora que não estou com saco”, mas ao abrir a porta foi pega desprevenida por aquele sorriso aberto e franco que lhe era dirigido.

“Meu Deus!” – pensou sob impacto.

- Boa noite. Encontrei esse mocinho perdido lá em casa. É seu?

Dando-se conta que devia estar com cara de “Ai se eu te pego” ou pior: de boba, tratou de recompor-se e estendeu os braços para receber Théo, que do colo dele parecia muito curioso com o desenrolar daquela cena inusitada.

- Boa noite. Muito grata pela gentileza.

- Cheiro bom de café – Ele disse na maior cara de pau.

- Aceita um pouco? – Ofereceu enquanto tentava se convencer de que estava apenas sendo educada.

- Aceito.

- Entre – Falou enquanto se afastava e deixava-o entrar com toda aquela comissão de frente.

Estava explicado. Entendeu porque a sua avó sempre dizia: Quem desdenha quer comprar.

Fechou a porta com um sorriso.