As Quatro Badaladas

Afasto toalhas molhadas e embalagem de sabonete de cima desta pequena mesa quadrada e rumino todas as últimas horas.

Do meu lado direito há essa igreja rosa iluminada por luzes brancas azuladas; no entorno há árvores com os galhos floridos estáticos, fantasmagóricos; há também as árvores sem flores, sombrias, contra a luz, farfalhando e envergando ao sabor do vento frio de Outono.

Do meu lado direito há essa arena do sexo desarrumada: cardápio, lençóis, travesseiros, embalagens de camisinha, blusa, carregador e toda a saudade do seu corpo que transborda em mim; há o ranço do gosto da sua virilha na minha língua, bem como o ranço do cheiro do seu sexo incrustado no meu septo.

Tocam as doze badaladas.

Tudo começou quatro horas atrás.

E, até agora, eu não sei como te agradecer.

Não sei nem se isso é real ou não; sinto que foi um sonho - e não estou sendo piegas. Juro. Juro que não consigo atinar com o fato de ter saído de um protótipo de Aqueronte e ter percorrido as ruas de ouro do Paraíso até chegar aqui, neste momento. Neste momento em que o conhaque vagabundo desce queimando as minhas vísceras, já corroídas pela azia que me tornava miserável quando nos encontramos naquela praça de alimentação.

Estávamos de mãos dadas quando meus olhos pararam no arco-íris de lixeiras. Algo se instalou em mim, enquanto minha alma parecia ser diluída e sair pelo ladrão. Eu perifericamente te observei me observando; seu olhar, minuto a minuto, ganhando uma sombra de preocupação - aquela sombra crepuscular que desce a colina, tapando tudo até que o tudo se transforme em escuridão.

- O que foi?

Seus olhos fremiam um tanto marejados, brilhantes. Lindos.

Não esbocei a menor reação. Não porque não quis - não consegui. Resumi-me a voltar os olhos às lixeiras, ao teto; voltar as órbitas dos meus olhos à parte posterior do topo do meu crânio vazio.

- O que foi?

- Nada - Consegui balbuciar, soltando um sorriso frouxo - É só aquele vazio de xoxota de freira, sabe?

- Mas... Assim, do nada? - E soltou também um sorriso débil.

- É...

O relógio da igreja diz que é meia-noite e vinte e oito. A privada é marrom. O pé esquerdo do meu tênis está de ponta-cabeça.

Há essa badalada única quando a meia-hora de cada hora é alcançada: TÉIM!

O som é vibração. Eu vibro com o vento frio e com o formigamento causado pela bebida nos meus lábios. Sou um compêndio de notas que não vibram.

Minha vida é uma música tocando repetidamente no mute.

Eu olho essas toalhas penduradas em ganchos e finjo que ignoro o pensamento que instantaneamente vem à mente.

- Por favor - pedi - vamos a um bar?

- Vamos...

Descemos aquelas escadas em silêncio. Eu me sentindo um robô, preocupado. O que me afligia e se escondia foi assomando a cada passo dado e... Ah, diabo! O drama!

Constatei que não era novidade alguma, que era só mais uma daquelas ocasiões em que o existir esgana o viver e que pensar no arrombamento do palato com um balaço me arranca um sorriso doentio - você me flagrou num desses insights, lembra? E me abraçou e me beijou, e todo o meu sofrimento, com um macrocosmo para cada cromossomo e um Universo inteiro para cada cromossomo de dor e agonia, explodiu dentro de mim; as lágrimas vieram e foram estancadas, e a sensação de estar à míngua, imerso num lodaçal sem chances de sair, surgiu arrebatadora.

Te afastei. Sem pronunciar palavra.

Porque te arrastar para uma via vazia e chorar copiosamente nos seus ombros era o que eu tinha em mente. Eu precisava erradicar todas as pústulas do meu interior - mas não em você, não com você. Não.

Há essa badalada da uma da manhã. O último dedo da bebida no copo. As cortinas brancas balançando. As toalhas penduradas se transformando em cobras falantes, mostrando o suicídio como uma porta - assim como o fazem as quengas do frontline dos cabarés do Baixo Augusta - ao Paraíso. Há os mendigos rasgando os sacos de lixo dois andares abaixo.

Há essa vontade de te ter o máximo de tempo possível ao meu lado.

Há essa gana de te prender em minhas teias e te sugar toda, assim como faz uma aranha com as moscas.

O caminho do bar que eu queria me sentar, pedir uma bebida e agir como um nobre com o coração ferido acabou desembocando na porta desse hotel.

Eu não queria e você queria. Eu queria e você não podia.

Eu me sentia em petição de miséria e você refulgia toda a pálida beleza que me cativou desde que te conheci. Com seu rosto de feições quadradas. Com seus longos cabelos vermelhos. Com seu quadril avantajado e com a mais bem desenhada das clavículas.

Sim, entramos. Subimos as escadas, entregamos os documentos, pagamos, subimos mais escadas e fechamos a porta atrás de nós.

E o mundo poderia ser só isso. Só esse ar lascivo, só essa sensação de que nada mais importa a não ser o prazer.

O tilintar da máscara da falsa moral em contato com o linóleo.

Há essa dupla badalada dos sinos da igreja, me avisando que são duas horas da manhã. Há esse canal pornô. Há essa mexicana peluda dizendo num inglês porco que não rasparia seus pelos nem por todo o dinheiro do mundo. Há o homem perguntando o porquê. Há ela respondendo que gosta de puxá-los enquanto dá o cu. No outro canal há esse trio de rapazes se sodomizando mutuamente. Eu sou o da frente, com o azar atrás de mim e a vida atrás do azar.

Enquanto a água caía morna sobre nossos corpos e nos beijávamos e nos bolinávamos e gemíamos, doidos para copular feito dois hereges, o fracasso que havia me abatido algumas dezenas de minutos atrás se convertia na mais arrogante das pompas - eu tinha os dedos envoltos nas carnes úmidas da mulher que mais havia desejado até então.

Você mordendo os lábios. Virando os olhos. Se contorcendo e me arrastando para a cama pelo pau.

E eu, com tudo quanto é bombeamento sanguíneo centrado nele.

Eu, com toda a minha avidez cunilinguística te sorvendo as carnes como se não houvesse um amanhã.

Há esse último gole, revigorante como um prêmio de loteria. Há essa fome. Essa badalada solitária das duas e meia. Os mendigos altercando com seus fantasmas lá, lá embaixo. Há esse travesti lindo que pensei que era mulher antes do close na ferramenta.

Te penetrei a pedidos, sem proteção, e foi como mergulhar numa tina de bálsamo. Ver teus olhos esgazeados se fechando mansamente, sincronizados com seu sorriso, sincronizados com seus suspiros. Ver-te de cima, encolhida no espaldar da cama, de pernas abertas, me engolindo, me apertando o membro e riscando minhas costas com as unhas, pedindo beijos, pedindo linguadas, mordidas, assopros, dedadas, carinhos e abraços.

Há esse meu pedido de uma dose dupla de conhaque.

Há esse saco de areia granulada para gatos na minha mochila.

Você nem sabe o que eu estou pensando em fazer.

Você nem imaginava o que eu estava pensando em fazer quando te coloquei de pernas abertas naquele aparato sexual que, por Deus, nos enlevou à quintessência do - ah, que paradoxo! - hedonismo!

Há essa memória de uma amiga médica me dizendo que o máximo que alguém conseguirá ingerindo areia de gato com conhaque é uma dor de barriga e uma lavagem gastrointestinal. Há ela me dizendo que esofagite é uma doença crônica, mais a longo prazo. Ela, debelando todas as minhas pesquisas na internet sobre o assunto.

Eu só queria que doesse menos do que viver o deixar de existir voluntário.

Há esse desgosto vindo agora, depois das badaladas das três da manhã. Se eu deitar e dormir agora, acordarei daqui cinco horas. E depois dessas cinco horas, mais umas quatorze; quatorze horas de pura ralação de cu na ostra em troca da perniciosa sensação de que nada valeu o esforço. De que não valerá. De que nunca, nunquinha, valerá.

Você sabe do que eu estou falando.

Quando você veio por cima do meu rosto, de costas, eclipsando as luzes com sua bunda linda, branca e reluzente, com todos os seus cheiros e líquidos, minha linda, eu entrei em estado de graça.

Agora eu sapateio em cima desse saco, deixando os grãos menores. Até transformá-los em pó. E quando tudo for pó, irei misturá-lo à pinga e beber, feito vitamina. A vitamina da eternidade. A vitamina de pó. Ao pó.

Eu achei que estava cansado quando ficamos curtindo a ergastenia pós-coito, mas não, não, nada se compara ao cansaço que sinto agora. O pior: não é físico.

É aquela angústia indizível, sabe? Aquela miséria que não cabe em palavras, sabe? Aquele anátema da alma, aquele carma - aquele chinelo eternamente virado na vida anterior, sabe?

Eu sei que você sabe.

Sabe?

Estou cansado... Estou cansado, porque cheguei na metade ou no terço da minha vida e já não tenho mais esperanças de ver uma melhora em mim e/ou no mundo. Não há utopia engendrada em mim que sobreviva mais do que dois minutos. Sinto-me inútil boa parte do tempo e quando não estou me sentindo inútil, não estou pensando. Estou lá, trabalhando, pegando ônibus, indo à faculdade a contragosto, pegando trens, pensando em redes em fazendas e filmes casa em noites gélidas de sábado, ouvindo músicas, tentando ler livros que não consigo terminar.

Quando recostei no espaldar e cruzei os braços pra te ver juntando suas roupas do chão, para colocá-las e me largar sozinho com a alma das mil fodas que essa cama serviu de palco, eu me senti sendo destituído de mais alguma coisa.

Já falei o quanto você é linda de calcinha e sutiã?

Quando você se prostrou de joelhos na cama e veio engatinhando em minha direção - quadril pra lá, pra cá, joelho sobe joelho desce, mão direita mão esquerda; sutiã rosa e calcinha branca -, sorrindo, com o batom recém-passado nos lábios, com os cabelos penteados e com ternura no olhar, acredite, algo se quebrou dentro de mim.

Já falei o quão arraigada fica minha clinomania quando é você quem está comigo na cama?

Quando, de cuecas, fechei a porta e te observei descendo as escadas a caminho de casa para sempre, me senti aquela árvore que cai no meio da floresta para a qual todo o mundo está pouco se fodendo.

Há essa badalada irritante das três e meia da manhã, fazendo afronta ao meu sapatear em cima da areia espalhada pelo chão. Devo ter ficado louco, ou estou só bêbado? Ou devo ter tido um ataque de lucidez? Desses que assaltam as pessoas quando elas estão esmagadas na porta de um ônibus cheio antes do sol nascer, a caminho de um lugar que odeiam e que passarão a maior parte do dia, sabe? Eu posso sentir os dentes delas rilhando e todo o sol das más esperanças que hão de se tornar realidade sendo tapadas por uma peneira imaginária que chamam de Deus.

Eu sei que você sabe do que estou falando... E é por isso que te escolhi como parceira: porque não suporto não ser compreendido. Eu sou um vira-lata que você acha na rua e conquista com um pouco de atenção.

Essa é a hora, Pequena, em que eu revelo que há também um herbicida na minha mochila.

Poderia ter uma arma.

Facões.

Lâminas diversas.

Uma corda.

Eu poderia dar um jeito de me enforcar com essas toalhas.

Eu poderia pular de cabeça ali naquelas lanças - não me daria trabalho algum.

Não, amor. Reza a lenda de que, se temos alma, ela não fica dentro do corpo?

Não sei. Talvez eu esteja sendo ignorante - mas, afinal, quem pode atestar que de fato existe uma?

Eu acredito que ela exista, e ela precisa de uma limpeza, sabe?

Não sei se você sabe.

Essa é a hora em que eu tiro um desses squeezes de meio litro da mochila.

Essa é a hora em que eu jogo areia, duas doses de conhaque e completo com esse Paraquat maravilhoso.

O cheiro é terrível. É forte.

Quase tão pior que uma tigela de dez gatos sem limpeza há quatro dias, por exemplo.

Eu bebo. Eu ingiro esse drink dos infernos, sempre pensando em tudo o que tivemos.

Quero me ater à última coisa boa que aconteceu em minha vida antes de resvalar para o desconhecido.

Antes que comece a hipóxia histotóxica.

Não sei se é esse o nome. Pesquisei na internet.

Essa minha amiga médica deve ter a nomenclatura correta.

Eu gostaria de ter perguntado a ela se era melhor fazer isso de intestino vazio.

Porque, você sabe, o esfíncter cede.

Tudo o que eu menos quero é uma notoriedade negativa pro meu suicídio.

Deus que me livre de sair nas fotos do laudo às voltas com merda!

Estou deitado na cama, Pequena, e tudo o que há em mim é um delírio tão bom que só pode ser a Morte se aproximando. Não houve experiência em vida que se assimilasse ao que estou usufruindo agora; nem sexo, nem churrasco com cerveja e rock 'n' roll e videogame com os amigos. Nem aqueles ollies de um metro de altura que cheguei a dar no auge da minha vida sobre rodas.

Estou deitado e tudo o que há é uma dor inenarrável me carcomendo as tripas, neném. Eu me retorço de um lado pro outro, tendo visões terríveis que jamais conseguiria encontrar palavras para descrever. Morrer não é exatamente o Paraíso que eu pensei.

Eu preciso colocar um ponto final neste manuscrito antes que soem as quatro badaladas. Eu preciso te pedir desculpas por tudo de mal que te fiz, Pequena.

O mundo é mau, fique sabendo. E eu só me arrependo de ter feito mal a quem não deveria - ah, mas com tanta gente dando sopa por aí -: você.

Há essas quatro badaladas vindouras.

Há esse desejo de falar o quanto te amei.

Se eu pudesse falar, eu falaria.

Há essa primeira badalada e um aperto no meu peito.

Há essa segunda badalada, e uma dor excruciante nos meus olhos.

Há essa terceira badalada, e o desejo de olhar nos seus olhos pela última vez.

Há essa quarta badalada.

E meu derradeiro e sofrido suspiro.

19/04/2012 - 19h34m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 28/07/2012
Código do texto: T3802345
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