Todos os Dias Até Hoje

Ele acordou com a cidade, não com o sol. Cedo, as ruas já dão com os sons ensurdecedores nos ouvidos de seus filhos, os ônibus passando antes da alvorada, o sino da Igreja que distante ainda perturba, as andorinhas gritando em cima das antenas das casas, e assim, ele acordou, mas decidiu ficar retido na cama, cochilou por um tempo que não soube dizer quanto, e levantou, sem ideias, sem rumo, sem nada que pudesse orientá-lo nem dizer o que poderia ser feito de olhos abertos ou de olhos fechados.

Respirou profundamente. Abriu os olhos. Mais um dia. O cachorro já o esperava, ansioso, como clamando permissão para subir. Virou o rosto. A janela ainda não resplandecia a total imponência da luz do dia. Com esforço levantou. Não sentia preguiça, nem cansaço, nem nada que o corpo pudesse pedir. Sentia apenas o vazio, um nada pós-sonho. Olhava em volta e não restava nada.

O dia correu cinzento, como quem fica olhando um caleidoscópio monocromático e com sons de foles distantes e monótonos, sem nenhum acontecimento que chamasse a atenção ou qualquer lembrança que pudesse aliviar o tédio em que ele se instalara, mas a imaginação, essa voou voos curtos no tempo e longos na altitude, de ida e volta, imaginação pródiga e medrosa, que não vai longe com medo de se perder no sonho, não aquele que se tem dormindo, controlado pelas profundezas da (in)consciência, mas aquele que se tem aos meio-dias, perigoso por não estar mais na escuridão dos olhos fechados, e assim chegou a hora do café, momento solene, solitário, sombrio, em que enfrentava a si mesmo sentado com unicamente uma caneca na mão. Pensou. Estou sozinho. Eu e meu café.

Não teve coragem de fazer nada. Pensou em jogar a caneca na parede, com a raiva dissimulada de uma novela das nove. Achou ridículo, ainda que aquilo pudesse fazer lhe sentir melhor. Além disso, vou ter que limpar toda essa cagada depois, a parede vai ficar manchada. O utilitarismo venceu seu ímpeto self-terapeutico. Sempre venceu. Era incompleto, mas se consolava na certeza de esta máxima ser humanamente universal. Sua incompletude era dialeticamente o que lhe dava movimentos e tristezas. Aceitava-a monasticamente.

Ela, sua incompletude, julgava, residia na imcompreensão alheia. Fazia um esforço hercúleo para entender tudo o que estava a sua volta, o que enfraquecia as suas energias para voltar-se para si. E assim, ninguém o compreendia, pensava, ninguém se esforça para entender o que se passa na minha cabeça, nem eu. Nem eu. NEM EU. Aquilo ecoou. Ficou rebatendo pelas paredes, esvoaçando os pedaços de roupas que descansavam preguiçosamente pelos móveis, reverberando nas janelas que quase quebravam, e chamando a atenção surda de todas as pessoas que não estavam ouvindo porque só estavam preocupados cada uma com seu mundo, e então o grito imaginário voltou de seu voo curto e bateu nele mesmo com uma truculência tão forte e arrebatadora que ficou imóvel. Sentia suas forças se esvaindo. Suas mãos enfraqueciam. E então a caneca de café caiu no chão. Não tremeu. Não piscou. Não se moveu. Só pensou. Agora tenho que limpar o chão.