SÓ UM PRATINHO?!

Antes o meu nome era Maria Alice, mas agora todo mundo me chama de Fumaça. Tio... Posso chamá o senhor de tio? Tio, você tinha que vê como eu era sujinha quando juntei com eles, parecia fumaça de pneu. Tá certo que sou meio escurinha mesmo, mas eu tava uma pretona. Aí eles me chamaram de Fumaça e meu nome ficou assim mesmo.

Tenho treze anos. Nem parece, né? Sou muito pequena. Acho que é de comê só um pouquinho à-toa. A gente nunca tem muita comida. Tem muita fome, mas comida nunca tem. Tamo sempre com fome. As pessoa diz que nóis é tudo esfomeado, mas né não, é que nóis nunca come direito.

Sou a mais pequena do grupo, mas o mais novo é o Toim, ele tem onze anos. Eu tinha isso também quando cheguei aqui.

Nóis era dez irmão – é assim que agente somo: irmão –, mas, no ano passado, os home apagaram a Piaçava. Coitada, ela foi puxa a bolsa da gringa bem na frente dos cana. Não viu eles. Eles correram atrás e passaram fogo nela quando ninguém tava vendo. Agora nóis é só nove.

A gente moramo em qualqué lugá. Agora nós tá morano embaixo daquela ponte, bem do lado do mangue. O senhor sabe onde é?

Onde eu morava antes? Ah, tio, isso eu não conto não.

Mas quando eu tinha casa, morava eu, meu pai, a mulher dele e o filho que ela teve dele. Meu irmãozinho era muito bonitinho.

Um dia, quando meu pai chego bebo – ele chegava bebo um monte de vez –, o Jonas – era esse o nome do meu irmão –, tava chorano muito. Acho que tava com fome. A mulher do meu pai tinha saído pra rua e ainda não tinha voltado. Meu pai, que ficou com raiva do choro do meu irmãozinho e da mulher não tá em casa, deu um tapa no Jonas. Coitado do meu irmãozinho, ele caiu no chão, bateu a cabeça e morreu. Morreu assim... na mesma hora... bem na minha frente. Nem demorô a morre. Foi bem na minha frente que meu irmãozinho morreu. Meu pai matô ele, tio. Quando a mulher chegô, meu pai falo que fui eu quem não tomô conta direito. Quando eu ia falá que não foi, ele me bateu muito e a mulher dele ajudô, bateu muito também.

Fiquei um monte de tempo trancada em casa, sem pudê sair. Eles não queriam que as pessoa visse meus machucado. Meu pai falo que se eu contasse alguma coisa sobre meu irmão pra alguém, ele matava eu de pancada. Fiquei com muito medo dele. Só agora tô falano isso com o senhor. Tio, nem sei o que fizeram com meu irmãozinho morto.

Ah, tio, você nem sabe o que meu pai fazia comigo quando chegava bebo e a mulher dele não tava em casa. Ele me mandava fazer umas coisas nele, sabe? Umas coisas assim... nas coisas dele. Eu não queria, mas ele me batia e eu tinha que fazê pra não apanhá mais. Mas um dia, quando ele fez as coisas dele em mim, eu fugi. Esperei ele durmi e fugi. Nunca mais voltei. Tomara que ele tenha murrido!

Fiquei um tempão sozinha na rua. Eu pedia comida às pessoa. É muito ruim pedi comida. As pessoa olha nóis com muita raiva, parece que nóis é algum bicho ruim. Bicho ruim, né, tio? Pra bicho bom, eles dá comida!

Um dia conheci a Piaçava, aquela que os home mataram. Ah, tio, o nome de verdade dela, não sei não. Lá ninguém mais tem nome. Os nome ficaram nas nossas casas. Se o senhor perguntá quem é Maria Alice, ninguém vai sabê. É isso mesmo, tio. Às vez, até eu esqueço que sou eu. E, é bom esquecer mesmo: ele lembra muita coisa ruim.

Foi a Piaçava que troce eu pro bando. Agora eu até como um poquinho mais. Mas é bem poquinho mesmo, tamo sempre com fome. Tio, agora, quando não dão comida pra gente, nóis rouba. Mas nóis só rouba assim, quando precisa. A gente tem que cumê, né, tio? As madama dá comida pra bicho, mas não dá pra nóis. Sacanagem, né, tio?

Poxa, tio, não sei como cheguei naquele lugá escuro. Ontem, nóis durmiu. Todo mundo tava lá durmindo. Só a Poia não tava. Ela tinha levado uma surra do Bigão – nosso chefe – porque roubô da filha de um bacana. O Bigão já tinha mandando nóis não se mete com essa gente. Ele já tinha dito pra nóis ficá longe de gente poderosa. Mas a Poia é cabeça dura, roubô assim mesmo. O Bigão ficou puto. Infiô a porrada nela. Aí, ontem, ela não fico com a gente. Mas a gente num ligô. Sempre que tinha uma briga, alguém acabava durmindo em outro lugá, mas depois voltava. Nóis é tudo irmão. Irmão não pode ficá brigado, né, tio?

Aí, nós tava durmindo. Depois foi muito barulho. Tinha uns home atirando. Mandando fogo na gente. Tinha muita arma. Depois tudo acabô.

Hoje, tio, quando acordei, tava sozinha. Tava tudo escuro. Até parecia que tinham levado o sol embora. O resto do bando sumiu. Andei muito tempo por ali, na escuridão, mas não encontrei ninguém. Acho que eles fugiram daqueles home, ou os home levaram eles, num sei o que aconteceu.

Tio, depois que andei muito, comecei a ficá com muito medo. Aí, sentei no chão e chorei. Sabe, tio? Eu nem lembrava mais como é chorá. Acho que última vez que chorei, foi no dia que meu irmãozinho morreu. Coitado dele, tão pequinininho e tão bonitinho. Mas, dessa vez, foi bom chorá. Não doeu chora, ninguém me bateu e ninguém morreu. Só chorei porque quis.

Quando eu tava chorano, uma mulher chegô e abraçô eu. Tio, levei o maior susto. Nem vi de onde ela chego. Mas o senhor precisava ver que abraço gostoso. Era o melhô abraço do mundo! Nunca vi um abraço assim. Lembrei da minha mãe. Qué dizê, lembrei não, pensei na minha mãe. Não conheci minha mãe, então, não posso lembra dela, né, tio? Mas acho que o abraço dela seria assim, gostoso daquele jeito.

Foi aquela tia que me abraçô que troce eu até aqui, até perto daquela árvore grande ali na frente, você tá vendo? Depois ela disse pra eu vir aqui, fala com o senhor.

A tia falô que aí dentro é muito bonito e que o senhor ia deixá eu entrá.

Tio, o senhor pôde deixá eu entrá aí no Céu?

Tio, se eu não pudé entrá não faz mal. Mas o senhor pôde arrumar um pratinho de comida, aí dentro, pra eu comê? Só um pratinho?

ooOoo

(republicação)

Sykranno
Enviado por Sykranno em 09/05/2012
Reeditado em 12/02/2022
Código do texto: T3658806
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