INSÂNOS
 
     Annete havia pedalado em sua bicicleta por um longo trecho até sua quitinete e, às vezes contornando o caminho evitando algum possível encontro com patrulhas da milícia francesa ou mesmo com agentes da Gestapo que vez ou outra faziam rondas por ali, naqueles campos. Annete havia recepcionado o agente inglês Cooper em um campo de pouso clandestino, próximo a Calais e sem muita perda de tempo se puseram caminho. Chegaram já tarde da noite em casa. Cooper de imediato preferiu se refrescar tomando um banho, ao contrário de Annete, que se dizendo exausta, deixaria para o dia seguinte.
     - Bem, vejo apenas uma cama. Cabe nós dois ali? – pergunta ele.
     - Eu vou dormir no quarto... sozinha. Naquele baú há lençóis, travesseiro, cobertores... Você fica por aqui.
     Annete mal tem tempo de tirar suas roupas e desaba sobre o colchão.
     Na manhã seguinte, após o banho,  Annete entra na sala e encontra Cooper já acordado, lendo alguns papéis. Ela não diz nada. Olha pela janela. Está amanhecendo. Ele é quem fala primeiro.
     - O que foi? Não conseguiu dormir? Ainda é cedo.
     - Sonhos agitados. Acabei perdendo o sono. E você?
     - Acho que estranhei o local... ou é a tensão da missão... sei lá. Também perdi o sono.
Ambos ameaçam um sorriso.
     - Precisa de ajuda em alguma coisa? – arrisca ela.
     - Não, não. Só estava conferindo nossos passes e decorando alguns detalhes de nossa missão. Acho melhor você fazer o mesmo. Eu decodifiquei, mas é preciso destruí-los. Farei isso após você tomar conhecimento.
     Annete vai até ele e começa a ler alguns documentos transcritos, com detalhamentos da missão.
     - Ontem, quando me disse por alto sobre a missão, não pensei que fossemos tão longe.
     - Espero que esteja preparada. Temos que cumpri-la antes do dia “D”.
     - Dia “D”?
     - No momento oportuno lhe darei mais detalhes. Continue lendo.
     Ela continua lendo todos os detalhes da missão e vai repassando os papéis pra ele. Lê a ordem para que acompanhe Cooper naquela missão e seus procedimentos.  Vê alguns passes. Os dois primeiros em nome de Annete e Charlton Fontaine.
     – Esses serão nossos nomes na primeira parte de nossa missão, em nosso deslocamento até Paris – Vai explicando Cooper enquanto ela lê.
     Outros dois passes em nome de Helene e Karl Weber.
     - Esses usaremos durante a parte final de nossa missão. Está segura?
     - Sim, e você? Tem algum conhecimento sobre a Alemanha?
     - Meu pai era alemão. Morei em Stuttgart até meus onze anos. Logo após a guerra, as coisas ficaram mais difíceis ainda e fomos morar em Liège, onde ficamos por quatro anos, até a morte de meu pai. Minha mãe era belga mas filha de pai inglês, resolveu ir pra Inglaterra... – ele olha pra Annete – Meio confuso, e não tem muito a ver com nossa missão; mas é bom que saiba pra lhe dar mais segurança.
     - Verdade. Quanto a mim, sou filha de mãe alemã. Falo fluentemente o alemão, e sem sotaque estrangeiro. Estou preparada. Mas temos que tomar algumas providências antes de partirmos. Tenho um transmissor que devo entregar a Gustave e quanto antes fizermos isso melhor.
     - Será que já retornaram da outra missão? – pergunta Cooper, curioso.
     - Não era nenhuma incursão de guerrilha, ou missão oficial do COE. Tratava-se de se abastecer de algumas mercadorias.
     - Ouvi dizer que o custo de vida cresceu de forma exorbitante. Qualquer mercadoria tem seus preços cotados nas alturas, e quem se dá bem são os produtores rurais... Ei! Espero que Gustave não pretenda usar os whiskys e os charutos que o presenteei como moeda de troca no mercado negro.
     - A essa altura algum produtor rural está de porre às suas custas.
     Annete dá uma risada, logo acompanhada pro Cooper.
     Pouco depois, estão ambos na rua, seguindo em uma única bicicleta em direção à casa de Gustave. Demorariam não mais que dez minutos. Annete, sentada na garupa levava envolto num saco de linho, o transmissor, colocado entre seus corpos. “Um pouco arriscado, mas talvez por isso, dê certo” – dissera Annete, e Cooper concordara.
     Pelas ruas Annete ia observando as filas imensas de pessoas pra comprar pão, ou fila pra comprar carne, mercadorias escassas com preços abusivos, vendidos em cotas limitadas de forma a servir o maior número de pessoas possível e, no entanto, muitas voltariam pra casa sem conseguir o que queria, o que ocorria geralmente após alguma briga.
     A maior parte da produção de alimento era confiscada pelos combatentes da guerra, deixando o povo com as sobras. O que os produtores rurais conseguiam desviar alimentando o mercado negro, elevava os preços para aqueles que conseguiam pagar, ou mesmo trocando por outros produtos escassos, como panos, bebidas, fumo e outras necessidades produzidas fora; muitos que não podiam pagar por alimentos e não tinham como conseguir trabalhando estavam condenados a morrer de fome. Annete já havia visto inúmeras moças que se prostituíam em troca de alimento para a família, por não conseguirem um emprego decente. Uma guerra é cruel, sempre mostra o lado animal do ser humano, o lado mais primitivo, deixando a loucura adormecida de cada um florescer e ganhar vida, onde quem é mais louco e mais forte se sobressai.
     Enquanto vai passando, Annete vê ainda pessoas idosas tomando sol, olhar distante, como que aguardando o retorno de alguém que saíra e não voltara; e nem tinha essa certeza. “Haverá alguém por eles?” – se perguntara. Observa ainda aquelas famílias sem rumo, famílias que até a pouco tinha uma vida, com emprego, perspectiva de vida, um futuro certo e... perderam tudo! “Guerra insana!” Aquela cena vai se repetindo ao longo do caminho. Mais adiante outro grupo de pessoas brigam por alimentos. “E qual guerra não é insana? Homens insanos!”
 
 



Walter Peixoto – março/2012



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Walter Peixoto
Enviado por Walter Peixoto em 29/04/2012
Reeditado em 27/06/2012
Código do texto: T3640182
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